Há um anti-herói clássico sob os óculos escuros e os fones de ouvido do Baby Driver

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
6 min readAug 11, 2017

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Edgar Wright, muita gente afirma quase que no automático, é um fã de cinema, alguém que gosta muito de ver filmes, talvez mais até do que de fazê-los. Esse amor fica muito claro desde os primeiros trabalhos: pelos títulos dos roteiros que escreve (Shaun of the dead, referenciando a obra prima de Romero); pelas referências ao cinema das décadas de 70 e 80 (em praticamente todos os seus filmes); e até por uma marca autoral muito particular, a de quase sempre partir de premissas de fusão dos gêneros que ele mais gosta — um filme de zumbi que é uma comédia romântica, uma comédia policial que é, na verdade, um terror setentista, uma ficção científica apocalíptica que é uma comédia de reencontro de velhos amigos e por aí vai.

Mas o trabalho de Wright demonstra que, para além de um amante de cinema e música, ele é um conhecedor. É como se, por debaixo da aparência de jovem independente fanboy, se escondesse um cineasta de conhecimento amplo e clássico, versado nos mais diversos aspectos narrativos de todas as eras. Conscientemente ou não, Baby, protagonista deste seu último filme, serve como um paralelo disso: um garoto carismático que não desgruda de seu iPod e dirige como se fugisse do diabo (They call me Baby Driver, And once upon a pair of wheels, Hit the road and I’m gone*), mas que traz em sua estrutura um anti-herói clássico, um James Cagney (até mais do que um Steve McQueen) no corpo de um millenial de óculos escuros.

O roteiro de Baby Driver (o primeiro que Wright escreve sozinho), muito além do que se imaginaria numa primeira leitura mais óbvia (referência a filmes de ação dos anos 1970), se estrutura a partir de um estudo de personagem que, quando despido de todas as suas características hodiernas, pertence a uma Hollywood clássica, talvez dos anos 1930 e 1940. Um jovem bem intencionado, mas metido em más companhias, Baby carrega os traumas de infância nas cicatrizes sutis do seu rosto e na sua construção emocional. Não por acaso é um motorista de fuga. Escapar faz parte do que ele é e todo o seu arco narrativo é construído ao redor disso. Esta premissa de arquétipo, contudo, por carecer de uma certa ousadia, traz consigo tanto as melhores quanto as piores características de um roteiro de cinema clássico com esse fim. Ou seja, ao passo que uma nostálgica familiaridade com o personagem surge quase que imediatamente, a ultrapassada construção das personagens femininas, por exemplo, não deixa de ser incômoda (a que não é donzela em perigo, é escada para vingança).

Em defesa de Wright, todos os outros personagens também são puramente funcionais: o misterioso chefão criminoso que representa a prisão na qual que Baby se encontra (Kevin Spacey), o bandido imprevisível que representa um perigo constante para ele (Jamie Foxx), o bandido que é previsível até que se torna imprevisível (Jon Hamm) e o ‘pai adotivo’ que serve para atribuir responsabilidade a Baby (CJ Jones). Ainda assim, escalar mulheres para funções que não fossem de escada para o vilão (Eiza González) ou para o protagonista (Lily James) não causaria nenhum dano irreparável ao roteiro. Pelo contrário, aliás. O que causa problemas ainda que não comprometa o filme completamente são outros clichês: conflitos que se estendem mais do que deveriam ou sub-tramas de última hora, problemas que surgem, se desenvolvem e são resolvidos nos últimos cinco minutos de filme e mal servem para causar um suspense barato.

Mesmo levando em consideração os problemas de representação e algumas arestas que poderiam ser aparadas, contudo, eu estaria mentindo descaradamente se dissesse que Baby Driver não foi uma das melhores experiências que tive no cinema nos últimos tempos. Isso porque fica difícil não ter uma tendência a ignorar tais problemas, visto que todos os outros elementos funcionam tão bem: um perfeito casamento de gêneros, um tímido musical com um filme de assalto; uma trilha sonora meticulosamente escolhida; uma direção com uma noção completa de mise-en-scène; uma montagem fluida com um ritmo incomparável; e um protagonista que combina o espírito dos personagens de Bogart, o carisma de Gable e a fragilidade de Brando, mesmo que Ansel Egort ainda não chegue perto do nível deste panteão. É um herói completamente contemporâneo, mas ao mesmo tempo completamente consciente de sua construção metalinguística, como uma reconfiguração do personagem de Jean-Paul Belmondo em Acossado (1960).

Muito se fala dos primeiros cinco minutos de tirar o fôlego, quando um assalto e uma fuga espetacular se desdobram ao som de Bellbottoms — música que é um “blues explosivo”, algo que parece contraditório mas surpreendentemente funciona, assim como a fusão de gêneros da premissa do filme. Mas o que me fez prender a respiração mesmo foi a sequência dos créditos iniciais: ao som de Harlem Shuffle, de Bob & Earl, a simples cena do personagem comprando café pra equipe se converte em uma perfeita apresentação de Baby em um número musical que se encaixa organicamente dentro de um plano sequência de três minutos. Edgar Wright não só mostra suas referências em ambas as cenas, como também, dando início à construção do personagem, cria signos e rotinas que — e aqui o roteiro funciona muito bem — serão a base para as rimas futuras de quando os planos não dão tão certo como o esperado.

A montagem é um show à parte. Talvez uma das maiores assinaturas estéticas dos filmes de Wright, que aqui trabalha novamente com a dupla Jon Amos e Paul Machliss, vai muito além de dar o ritmo necessário. É um trabalho que está completamente inserido e inseparável da narrativa em si, do tipo que seria impossível fazer caso não estivesse planejado desde muito antes de ser filmado. Para além dos raccords (cortes) e elipses charmosos — como um copo visto de cima que se torna o botão de um aparelho de som ou, mesmo sem cortar propriamente, uma câmera que se move para a esquerda e mostra Baby buscando um emprego entrando pela porta da frente e saindo uniformizado pelos fundos — a montagem serve à trama, acelerando ou desacelerando quando necessário. A fotografia de cores primárias estilo technicolor de Bill Pope e o design de produção de Marcus Rowland também fazem seu papel, tanto para mover o enredo como para consolidar o estilo único do filme. A união destes elementos resulta em momentos brilhantes, como no terceiro ato, quando Brighton Rock, do Queen está a todo o volume e uma cerca de proteção composta por seis cordas vai se arrebentando pouco a pouco justamente no ápice do solo da guitarra distorcida de Brian May.

De todos os acertos do filme, juntamente com a montagem, o maior é se apoiar na atuação e no essencial carisma de Ansel Egort (que já chamou a atenção em seu primeiro papel, no desastroso remake Carrie, a Estranha). Mesmo falando pouco (pouco mesmo), consegue dar vida a um personagem que é ao mesmo tempo cool, indiferente e completamente frágil. Ele não só consegue sobrepor estas camadas como também consegue demonstrar quais delas estão ocultas sobre quais (na cena em que o grupo está na lanchonete no terceiro ato, por exemplo). Quanto ao restante do elenco, não fazem nada muito além de simplesmente “funcionar”: Kevin Spacey, Jon Hamm, Jamie Foxx, Eiza Gonzales e companhia trabalham cada um sem mudar muito o tom de atuação. E Lily James, ainda que encarne perfeitamente a mocinha apaixonante e cantarolante, não pisa fora desta persona.

Mesmo referenciando uma época que há muito já se foi e propondo juntar dois subgêneros clássicos, Ritmo de Fuga é um respiro de originalidade no cinema de blockbusters atual. Ainda que fique claro um receio de Wright em mergulhar de cabeça na parte musical, ele demonstra um controle absoluto sobre tais referências e sobre a própria linguagem sem soar obsessivo com seus temas e consegue trazer aqui o seu melhor filme desde Todo Mundo Quase Morto.

*Eles me chamam Baby Driver
E uma vez sobre duas rodas
Pego a estrada e vou embora

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