Logan, um filme sobre consequências

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
8 min readMar 9, 2017

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Sem querer entrar no ciclo obrigatório de falar da estagnação do sub-gênero de super-heróis na Hollywood deste século, quero chamar a atenção brevemente para uma das fórmulas irritantes vistas nesse tipo de enredo: a ameaça à humanidade e a ação inconsequente de heróis para impedirem que os super-vilões destruam o planeta. Desde que o Dr Octopus no (excelente) Homem-Aranha 2 ameaçou a nossa existência, a ideia da aniquilação total e iminente foi repetida incessantemente até chegar num ponto em que, de tão clichê, não era importante o suficiente para que o espectador se preocupasse. Dos crustáceos alienígenas do primeiro Vingadores ao combate aborrecido com vilão ultrapoderoso no fim de Homem de Aço e Batman v Superman, até aos desfechos fadados ao fracasso de X-Men Dias do Futuro Esquecido e Apocalipse, surge um sentimento em comum em todo o público: no final, tudo vai ficar bem. Não importa a ameaça.

O problema se agravou na última década. Com os universos compartilhados de Marvel Studios, DC/Warner e Fox, a certeza que permanece é a de que, por mais ousado ou artisticamente fora da caixinha que o filme seja (Homem Formiga, Esquadrão Suicida, Deadpool), os acontecimentos do mesmo terão efeito quase ou totalmente nulo no universo em questão. A subversão de Logan para o gênero está justamente em encontrar um equilíbrio em demonstrar efeitos permanentes das ações dos personagens ao mesmo tempo em que se reduz a escala dos conflitos. Não é a existência humana ou mutante, afinal, que está em perigo. Não é o futuro de todo um universo que está em jogo. Mas ainda assim, Logan não deixa de ser um filme sobre consequências.

Ambientado em 2029 de alguma das confusas linhas do tempo dos X-Men no cinema, o longa se passa num mundo em que, por uma razão desconhecida, mutantes estão praticamente extintos. Além do personagem título, os únicos dois da espécie vistos em tela são o professor Xavier e o sensitivo Caliban (Stephen Merchant). James ‘Logan’ Howlett, que trabalha como motorista de limusine, tem como único objetivo juntar dinheiro para fugir para o oceano ao lado do professor, agora um nonagenário que sofre de alguma doença degenerativa similar ao mal de alzheimer. Quando uma menina com poderes e ferocidade similares à do protagonista entra em cena, surge também um grupo de mercenários que quer eliminá-la. Não é por acaso que seja o primeiro filme sobre o mutante cujo título não faça menção ao nome Wolverine. Por mais que o pano de fundo dessa história traga experiências genéticas e o genocídio da raça, o seu foco principal é o homem por trás da alcunha.

A primeira cena é um resumo do que há de melhor neste estudo de personagem. Enquanto dorme no banco do carro alugado, Logan é perturbado por um grupo de ladrões que tentam roubar as rodas do veículo. Sonolento, ele tenta ao máximo evitar o conflito e expulsá-los, mas o embate sanguinário com a gangue é inevitável e, pela primeira vez nos muitos anos que acompanhamos o personagem, percebemos algo inédito: a sua dificuldade em se regenerar dos ferimentos. A tomada do mesmo caminhando vacilante em direção ao grupo demonstra a dificuldade dele em se manter de pé. Quando ele resolve matá-los, até mesmo as suas armas mais letais, as garras revestidas do indestrutível adamantium, não funcionam tão bem como sempre funcionaram. O diretor James Mangold, que sabe que o objetivo da cena não é a violência em si, mas o estabelecimento do estado do anti-herói, busca filmá-lo de muito perto, dando destaque para as expressões cansadas, desesperadas e doloridas de Hugh Jackman ao invés dos golpes e dos vários membros decepados.

É no corte para a cena seguinte que vem o choque. Ao invés de ter se regenerado completamente e estar novo em folha como estávamos acostumados, Logan se inclina sem camisa sobre a pia de algum banheiro público, removendo os estilhaços e pedaços de chumbo das balas. Mesmo que as marcas da idade já tenham aparecido claramente na cena anterior, uma quantidade considerável de cicatrizes cobre o seu corpo é evidência de que agora ele precisa lidar fisicamente com os resultados da violência sofrida. Porque não só as suas feridas se regeneram de maneira mais lenta como, em alguns casos, elas não se regeneram completamente.

O trabalho de Jackman com o papel é algo especial. Muito além de uma boa interpretação, o que ele entrega é proporcionado tanto por seu talento como pelo tempo. Depois de 17 anos, afinal, não há como não notar o quão confortavelmente veste a pele do personagem. Como resultado de um longo processo de construção e de um envelhecimento conjunto, Hugh Jackman se tornou Wolverine tanto quanto o Wolverine dos filmes se tornou Hugh Jackman. Mesmo assim, o trabalho do ator passa longe de uma interpretação cômoda, tanto em cenas emocionalmente exaustivas (como sua última neste filme) quanto em momentos mais “leves” como quando cuida do professor. Patrick Stewart não fica muito atrás, apesar de não ter tanto destaque quanto o protagonista. Com a mente perdida e o eventual descontrole de seus poderes psíquicos destrutivos, ele consegue manter a coesão de alguém extremamente inteligente e sábio que lida com suas patologias mentais sem cair no clichê desse tipo de personagem. Por um lado, ele entrega alguns momentos cômicos, bem-vindos a um filme dramaticamente pesado, por outro ele demonstra um sentimento insuportável de culpa em relação a um erro que cometeu num passado não tão distante.

A trama do filme avança quando entra em cena a mutante Laura: uma criança com poderes idênticos aos de Logan, fruto de um programa derivado do Arma-X — originalmente responsável pelos implantes de adamantium no esqueleto do mutante. Além da regeneração e das garras metálicas, a selvageria é bastante familiar também. A novata Dafne Keen, transparece por trás da sua expressão mal-humorada e pela linguagem corporal, um sentimento que combina intuições de alerta constante de quem cresceu em laboratório para ser uma arma, com uma curiosidade puramente infantil de quem não é acostumada às regras sociais do mundo exterior. Habituada a resolver seus problemas da maneira mais primitiva, ela poderia muito bem fazer parte de um grupo de meninas de poucas palavras e extremamente letais ao lado de Mathilda (O Profissional), Hit-Girl (Kick-Ass) e Eleven (Stranger Things).

Entrando na onda de sucesso do ultraviolento Deadpool, do ano passado, a divulgação do longa deu bastante destaque à classificação indicativa para maiores, fruto de uma sanguinolência extrema. Não que o filme não seja pesado. Membros são decepados com certa frequência, claro, litros de sangue digital são derramados e o fato do protagonista estar perdendo suas habilidades regenerativas também contribui para isso, mas a relação entre os três personagens principais é o melhor de Logan. De seus três atos, o segundo, quando o filme se converte num tipo de road movie de família (com direito a “vovô Charles”), é o melhor deles. Aqui que o justificado sentimento de paternidade do protagonista em relação a Laura se manifesta e é aqui também que ele vê a oportunidade de impedir que ela cometa os mesmos erros que ele. A violência ainda está lá, mais brutal e mais crua que qualquer outra adaptação de história em quadrinhos, mas a diferença está na relação do herói com seus atos. O que Logan tenta expressar é um sentimento de culpa e de arrependimento acumulado ao longo de muitas décadas. Por mais que ele consiga regenerar seus ferimentos físicos desde que era uma criança em meados do século XIX, nada nos garante que exista alguma cura para as chagas psicológicas. Estes sentimentos se resumem de maneira perfeita quando, num diálogo com Laura, quando ela afirma só machucar pessoas ruins, ele afirma “Tudo a mesma coisa”.

Infelizmente, o roteiro tem um equilíbrio imperfeito que impede que o filme chegue a um patamar de grande adaptação. O script do próprio diretor James Mangold, de Scott Frank e revisado por Michael Green peca na construção dos antagonistas. Os Carniceiros, grupo de mercenários liderado por Donald Pierce (Boyd Holbrook) e pelo Dr Rice (Richard E. Grant), tem como função muito clara a de gerar um número satisfatório de peões armados até os dentes e que possam ser vitimados pelos heróis. Um outro “mutante” que surge no segundo ato e permite que Logan confronte o seu próprio passado, é interessante até certo ponto mas não o suficiente para se tornar de memorável.

Além do erro de negligenciar os vilões principais ao torná-los um grupo de clichês esquecíveis — o mercenário intolerante, o cientista desumano e o capanga musculoso — a decisão de quebrar o ritmo do filme para explicar os meandros dos experimentos das maneiras mais evidentes possíveis: um vídeo gravado num celular e alguns diálogos expositivos, são incoerentes com a decisão acertada de não explicar qual foi o evento traumatizante que aconteceu na costa leste, o que aconteceu exatamente aos mutantes e como Logan conseguiu as garras de adamantium novamente depois de tê-las perdido no final de Wolverine, Imortal.

A direção de Mangold, por outro lado, é uma das melhores de sua carreira. Com um tom assumidamente autoral, ele não esconde as suas influências de western. E não, não me refiro à clara citação a Os brutos também amam do roteiro, mas à escolha de cenários, aos ângulos de seus planos médios e à mise en scène que precede quase todos os confrontos. Com uma fotografia suja de John Mathieson claramente baseada em contrastes de luz e não em cores, a iminente conversão para a versão preto e branco do filme (algo que já vimos em O Nevoeiro e Mad Max: Fury Road) que o diretor já confirmou promete ser uma das mais belas, principalmente se basearem no que foi visto até agora no instagram oficial do longa.

Logan tem um tom de despedida desde seu princípio. Dentro do enredo, antes de Laura, dos mercenários e de uma derradeira aventura, o desejo mais profundo do personagem é comprar um barco e ir embora. Mas se analisarmos de maneira mais ampla, os objetivos de passar o bastão para a mutante mais jovem e de dar um bom final ao personagem se tornam muito claros. Mesmo com alguns tropeços de um roteiro imperfeito, o filme consegue nos entregar dignamente a despedida de um dos personagens mais importantes e mais queridos do gênero. Espero que você não retorne, Hugh Jackman.

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