Moonlight, poema sobre um herói trágico

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
6 min readMar 19, 2017

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É comum ler por aí que alguns filmes, cenas ou interpretações são “poéticos”. De fato, este é um elemento importante para certas histórias. Moonlight é um bom exemplo disso, carregado de lirismo, de beleza e melancolia. Muito mais que uma poesia, porém, o vencedor do prêmio máximo do Oscar deste ano é praticamente um poema. Ou seja, além de trazer certas características atmosféricas, o filme tem a estrutura minuciosa de uma composição sobre um protagonista trágico.

O roteiro de Barry Jenkins, que também dirige o longa, é inspirado numa peça de teatro nunca encenada de Tarell Alvin McCraney. Estruturado em três atos distintos (três estrofes, eu diria), o enredo se desenvolve a partir de um estudo de personagem sobre Little, sobre Chiron e sobre Black, três facetas do mesmo garoto que cresce em Liberty City, bairro pobre da periferia de Miami. Filho de mãe solteira viciada em crack, Chiron descobre em Juan, traficante responsável pelo território, uma figura em quem se espelhar e, quando é acolhido pelo mesmo, surge uma esperança ou vontade de se libertar de seu casulo de receio e timidez e de buscar afirmação de seu próprio eu. Certos traumas, contudo, não só interrompem este processo como o fazem se fechar numa carapaça ainda mais maciça.

O uso das ferramentas de roteiro como desenvolvimento do personagem é exemplar. Com foco somente no que é preciso, utiliza elementos até literários para fortalecer a história principal, como quando faz questão de marcar os três capítulos da vida do protagonista com letreiros minúsculos em fundo preto: i. Little, ii. Chiron e iii. Black. Ao contrário da preguiça que esse tipo de recurso representa normalmente, contudo, estas marcações são necessárias para demonstrar o que existe sob a pele do protagonista em cada uma das fases — na primeira, o apelido é o que melhor descreve o menino assustado e confuso; na segunda, a busca por autoafirmação; e na terceira, uma espécie de desejo ocultado por ele próprio.

Tal script é resultante do processo de um artista que percebe que, quanto mais corta excessos e abraça o essencial, mais ele fortalece o que o cerne de sua obra quer representar. Os coadjuvantes são evidência desta postura. Juan (Mahershala Ali), primeiro a abrir os braços para Little, existe como representação ideal para o garoto. Quando o ensina a nadar, quando compartilha seu passado de menino cubano que corria à luz do luar e, principalmente, quando o aconselha a descobrir seu próprio eu. De todas as vezes que Juan faz isso, a mais marcante é à beira da praia, quando profeticamente ele adverte: “Em algum momento, terá que decidir por si mesmo quem você vai ser. Não pode deixar ninguém tomar essa decisão por você”. Paula (Naomie Harris), mãe de Chiron que desde o princípio serve como uma base instável de apoio para ele, é ao mesmo tempo uma preocupação constante e imprevisível. E mesmo quando ele cresce e os papéis inevitavelmente se invertem com ele assumindo a responsabilidade, ela ainda assombra seus pesadelos. Kevin, o amigo de infância é talvez único a perceber quem ele realmente é por baixo de todas as suas defesas. Fora essas três figuras, Teresa, namorada de Juan, Terrel, um bullie e os outros personagens existem todos em função do protagonista. Além do roteiro, a direção, o elenco, o figurino, a fotografia e a direção de arte falam por si só em função do mesmo objetivo.

Por mais meticuloso e preciso que seja como roteirista, contudo, Barry Jenkins enquanto diretor comete um erro muito pontual aqui: o de ‘aparecer’ mais que deveria. Por conta de suas decisões de movimentação de tomadas em alguns momentos, acabamos afastados da história principal. Se na primeiríssima​ cena, a tomada longa que acompanha Juan saindo do seu carro e o circula enquanto este está olhando em volta serve como reflexo de seu ponto de vista, em outras nos desconectamos da trama para nos perguntarmos o motivo da câmera acompanhar a abertura da porta de um carro, por exemplo. Quando Jenkins acerta, por outro lado (o que acontece na maior parte do tempo, diga-se de passagem), ele se demonstra um cineasta com uma segurança quase absoluta no que faz. Como na primeira cena de Chiron, por exemplo, quando ele foge de colegas bullies e o nosso ponto de vista é justamente dos perseguidores, o que cria a impressão de que o protagonista foge também do próprio público.

Aliado ao diretor de fotografia James Laxton, o diretor cria um tom de realismo muito impactante e ao mesmo tempo belíssimo, atingindo um nível alto de contraste e de cor que de maneira nenhuma enfraquece a melancolia que permeia o filme. Pelo contrário: o fato das sombras ficarem mais marcadas principalmente em cenas com baixa profundidade de campo (quando o fundo da imagem fica desfocado) enriquece as expressões dos personagens ao passo que destaca as camadas deles próprios. E a tonalidade ligeiramente mais quente com quebra de quarta parede (quando os personagens olham pra câmera) é uma maneira extremamente eficiente e elegante de demonstrar que algumas sequências se passam dentro de sonhos de Chiron.

Já em outros elementos narrativos especificamente, os objetivos são muito menos estéticos e mais funcionais. Como quando os montadores Joi McMillon e Nat Sanders entrecortam as imagens de diálogos enquanto não modificam o áudio, causando a impressão de que Paula fala com o filho sem mover os lábios, ao mesmo tempo reflexo de sua dependência química e da confusão do ponto de vista dele. Ou em relação aos figurinos de Caroline Eselin, que sutilmente contam sozinhos a história paralela de como Paula perde o emprego de enfermeira e se torna usuária de drogas — substituindo o uniforme por roupas mais escuras e cinzentas — e demonstram claramente como o que acontece no segundo ato faz com que Chiron enquanto adulto abrace a pior faceta de Juan, a da agressividade — adotando o gorro e acessórios semelhantes e indo além: como as placas que usa nos dentes.

Uma das escolhas mais acertadas do ponto de vista narrativo, entretanto, é simplesmente dar espaço aos atores. O elenco — completamente negro, o que é uma lição admirável para Hollywood de que tudo que separa minorias de todo o resto na indústria é somente a falta de oportunidade — é escolhido com o mesmo cuidado que cada linha do roteiro. Quem mais se destaca entre os coadjuvantes, não há dúvidas, são Naomie Harris e Mahershalla Ali. Ela, a cada aparição, se mostra mais profundamente presa ao seu vício, passando do medo pelo filho para o completo descontrole e para o arrependimento e conseguindo deixar muito clara a diferença de cada um destes sentimentos. E é preciso destacar aqui a sutileza da evolução da maquiagem de Doniella Davy, que é marca todos os estágios desse processo. Já Ali, um ator em plena evolução que ganhou destaque como o lobista Remy, de House of Cards, e como a melhor coisa de Luke Cage, ambas séries da Netflix, constrói seu Juan com uma sensibilidade tremenda. Mesmo que os diálogos não deixem isso claro, consegue passar o quanto ele se vê no jovem Chiron e o quão receosamente ele lida com isso.

Ainda falando de atuação, é impressionante o como os três atores que dão vida a Chiron conseguem representar as fases distintas do personagem de maneira coesa. É ele, afinal, o herói deste poema, a força que carrega essa história. Cada um dos intérpretes consegue dar conta de algo admirável: trabalhar constantemente com as duas camadas do papel. Alex Hibbert, a versão mais nova, resume a tristeza e confusão infantil de Little, ao passo que Ashton Sanders e Trevante Rhodes constroem respectivamente um adolescente inseguro com a própria sexualidade e um adulto que se fechou numa couraça defensiva mas ao mesmo tempo são capazes manter a coesão de uma tristeza constante subcutânea de quem precisa o tempo todo esconder o seu próprio eu.

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