O Regresso

CRÍTICA (SPOILERS NO TERCEIRO PARÁGRAFO)

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
5 min readFeb 9, 2016

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O Regresso é um espetáculo visual… Desculpa! Eu sei que parece propaganda da Tela Quente, que é um clichê dos maiores usar estas palavras (“espetáculo” e “visual”) exatamente nesta ordem, mas não consigo descrever de outra maneira. Cinema é uma arte essencialmente visual desde seu nascimento e, se o filme de Alejandro Gonzáles Iñárritu está entre os grandes filmes do ano é exatamente por conta deste show de fotografia do mexicano Emmanuel Lubezki. Óbvio que os outros aspectos também pesam bastante, mas não tanto quanto esse.

Como escreve Ana Maria Bahiana no seu Como ver um filme, o filme “segue a visão de uma pessoa, o diretor, mas emprega os talentos de uma pequena multidão de indivíduos igualmente criativos”. Regresso, portanto, é de Iñárritu e de Lubezki tanto quanto é de Leonardo DiCaprio e do resto do elenco, do montador Stephen Mirrione, do designer de produção Jack Fisk e de tantos outros. Mas ele não seria o que é sem sua fotografia, que aposta no contraste entre o sangue e a violência e os belíssimos cenários, filmados sob a luz natural do sol, da lua e do fogo. Visualmente, fica impossível não lembrar dos trabalhos de Lubezki em O Novo Mundo e, principalmente, Árvore da Vida (ambos dirigidos por Terrence Malick).

A história se desenvolve em torno do explorador Hugh Glass (DiCaprio) que, depois de ser quase morto por um urso pardo e de ser enterrado vivo, deixado para morrer, busca vingança pelo assassinato do filho. Inspirado pela vida de um personagem real, o filme é ambientado na região às margens do rio Misouri, no início do Século XIX, um dos mais atribulados períodos da história norte-americana. Com a guerra pela independência recém terminada (em 1783), os conflitos contra os nativos ainda se desenrolavam em territórios até então inexplorados.

A América apresentada como um território selvagem está lá desde o início. Iñarritu comanda dezenas de figurantes na complexa batalha que abre o filme. A sequência consegue ao mesmo tempo ilustrar os sangrentos conflitos com os indígenas, nos apresentar os personagens principais e destacar o pior lado do colonialismo. Em um trecho, por exemplo, Fitzgerald, o antagonista do filme, interpretado por Tom Hardy, se mostra cruelmente pragmático ao comandar uma retirada enquanto luta contra os nativos e deixa os companheiros para traz para poder salvar o maior número de peles de animais selvagens que pode. Ao mesmo tempo, o Hugh Glass de DiCaprio não só fica para traz lutando para que o filho alcance as embarcações de fuga, como também quando foge, carrega um homem ferido.

Por essas e outras grandes cenas, é uma pena que o roteiro adaptado (do livro homônimo de Michael Punke) por Mark L. Smith e alterado pelo próprio Iñárritu não esteja a altura. A estrutura do script é mais que eficiente ao desenvolver O Regresso como uma história de vingança clássica, mas ao mesmo tempo certos diálogos expositivos demais chegam a atrapalhar o clímax ou tirar o espectador do foco principal. Exemplo disso são alguns diálogos, como quando o nativo arikara Elk Dog (Duane Howard) dá uma lição de moral aos franceses sobre o colonialismo quando precisa trocar peles por cavalos e também (spoiler) as derradeiras e desnecessárias palavras ditas por Fitzgerald — “me matar não vai trazer seu garoto de volta” — que servem apenas como escada para que o protagonista possa trazer à tona a frase de efeito que aprendeu com Hikuc (Arthur Redcloud), um nativo pawnee: “A vingança está nas mãos do criador.” (/spoiler) Por conta desse tipo de detalhe o filme acaba se tornando óbvio demais no terceiro ato, mas felizmente a excelente fotografia e as atuações fantásticas, além da eficiente montagem, acabam sustentando as quase três horas de duração.

A montagem de Mirrione (Birdman, Jogos Vorazes), clássica e cronológica, não é nada muito além de eficiente e até se torna previsível ao alternar sonho e realidade com mais frequência que deveria. Mas o trabalho tem seus bons momentos, como quando demonstra o delírio do protagonista em um ponto chave (quando ele sonha com as ruínas de uma igreja). A partir daí, seu processo de recuperação termina e o terceiro ato é iniciado. A já elogiada fotografia de Lubezki possibilita que o filme seja um dos mais visualmente bonitos dos últimos tempos, transformando cada quadro da projeção em uma obra de arte por si só, mesmo que, de vez em quando, seja necessário abandonar o cenário para dar lugar aos closes nas expressões do protagonista.

Não é possível desvencilhar O Regresso de Leonardo DiCaprio. E o primeiro Oscar do ator, que provavelmente receberá no próximo dia 28, será merecidíssimo, mesmo que aqui não esteja tão bem quanto esteve em O Lobo de Wall Street. Ele compõe o seu Hugh Glass a partir de certos trejeitos desde o início, quando se isola do grupo ao lado do filho indígena, mas demonstra a evolução do personagem, praticamente sem falar, quando desafia a natureza em suas muitas formas ao longo de sua trajetória. Depois do conflito com o urso, Glass chega a enfrentar a terra em sua cova rasa, o fogo quando cauteriza um ferimento com pólvora (a maquiagem das feridas, aliás, é impressionante), a água quando é levado pelo rio misouri e o vento quando faz o impensável para se proteger de uma nevasca depois de saltar de um penhasco.

É preciso destacar também as perfórmances de Tom Hardy, que, com seu John Fitzgerald, representa o colonizador que considera seus os recursos naturais que extirpa dos povos nativos (mesmo que o roteiro lute para transformá-lo numa caricatura de vilão maldoso); e também Domhnall Gleeson e Will Poulter, cujos respectivos Capitão Henry e Bridger trazem um peso de realismo e moralidade ao conto de vingança.

Apesar de sua irregularidade, fruto principalmente do roteiro e da vontade de tornar a história a mais comercial e simples possível, é um dos grandes filmes de Iñárritu. Mesmo que o resultado final não chegue perto da obra-prima que é Mad Max — A Estrada da Fúria, por exemplo, é preciso dar todo o incentivo e o destaque ao diretor mexicano, que, com O Regresso, representa uma rara classe de cineastas que tem peito para contar histórias da maneira difícil, para buscar empreitadas ousadas e corajosas. Uma classe que foge das soluções fáceis da pós-produção pelo CGI e arrisca ficar a mercê das forças naturais ou pior, da pressão de uma Hollywood que vive do lucro de histórias enlatadas.

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