Sara Guia de Abreu
cordão
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2 min readMay 14, 2021

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É só uma fase.

Calças do pijama, uma camisola com nódoas, cabelo por lavar, lágrimas a rolar pelas bochechas, um bebé de 3 semanas que dorme ao meu lado, a mama direita que não desempedra depois de três horas de todos os truques possíveis e imaginários. A ressaca de ontem: aconteceu o mesmo mas do lado esquerdo. Três horas de lágrimas e todos os truques debaixo da manga. Mais lágrimas.

Já não sou mulher. Sou um boneco de borracha. Um pedaço de matéria que existe apenas para extrair leite – a qualquer custo. Mamas em carne-viva, mamas em pedra, mamas de fora, mamas a pingar, mamas na bomba, mamas no bebé.

“A culpa é tua. Não estás a fazer isto bem.” – ouço. Estou sozinha, mas tenho a certeza que alguém o disse. Múltiplas vezes.

Bem que aquilo que me sai em lágrimas podia sair em leite.

Pego no telefone, preciso de um intervalo deste pesadelo e leio o texto da Joana.

Mais lágrimas.

Tenho 37 anos, sou casada, vivo fora de Portugal, tenho um bebé de 3 semanas e sou madrasta de uma miúda incrível de 13 anos. Aos 28 anos, quando ela irrompeu pela minha vida adentro, foi um desafio tão difícil que a vontade de ter filhos esmoreceu. A nossa relação evoluiu para um lugar bonito mas a minha vida sem filhos era boa, livre, e não sentia vontade de mudar isso.

Quando temos esta idade, e sobretudo se estivermos numa relação estável, toda a gente acha q pode invadir a tua privacidade e perguntar-te vezes sem conta se queres ter filhos. E se ousares responder que não pensas nisso, seguem-se os clássicos “ohh porquê?”, “um dia vais arrepender-te”, “ah mas tu ias ser uma mãe incrível”.

No meu caso, precisei (ainda que inconscientemente) de convencer toda a gente de que isso não estava nos meus planos para poder finalmente ser livre de pensar pela minha própria cabeça. E o desejo apareceu. E engravidei. E tive uma gravidez maravilhosa. E um parto que, ainda que extremamente exigente, foi uma experiência bonita e positiva.

Tenho um bebé que me deixa dormir decentemente à noite, o pós-parto não está a ser o filme de terror previamente anunciado e o meu marido é um ser humano incrível, para o qual não existem palavras suficientes porque ele não faz só o que é suposto, faz muito mais do que isso e essa é a verdadeira razão porque estou a recuperar tão bem.

E ainda assim.

E ainda assim, aqui estou eu, no desespero, no limite do desânimo, da frustração, da solidão. A sentir-me um boneco descartável, um depósito de alimento para ser usado e abusado a qualquer hora, sem restrições.

Daqui a 5 minutos volto a olhar para o meu bebé a dormir e volto a surpreender-me com a perfeição da minha criação.

É assim, a maternidade. Um constante vaivém bipolar entre o desespero e o embevecimento.

É uma fase. É só uma fase, tento lembrar-me.

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