O cordão Diário Comunitário
cordão
Published in
3 min readNov 29, 2021

--

Em Março de 2015, dois meses depois de decidir engravidar, confirmei que a Emmeline vinha a caminho. Nesse dia, estava longe de imaginar que rapidamente perderia a minha identidade, para nascer como mãe. Ficaria perdida. Num limbo cambaleante. Estava longe de compreender que a sociedade me destinara um não lugar, uma não personalidade, um buraco escuro, do qual eu não sabia como sair. Ainda assim, seis anos depois, não tenho a certeza de já ter saído completamente do poço-mãe.
Não terá, com toda a certeza, acontecido desta forma com todas as mães. Tal como cada criança é uma criança, cada mãe é uma mãe. Encaramos, sentimos, vivenciamos a maternidade — tal como tudo na vida — de formas muito distintas, porque antes de sermos mães, somos mulheres distintas: com necessidades diferentes, condicionadas de forma diferente pelo patriarcado, com histórias de vida diferentes. Todas as vivências são válidas e importantes. E devemos partilhá-las, porque a maternidade pode ser uma caverna escura e húmida, que se aquece e ilumina quando sentimos que outras sentem como nós. Esta é a minha caverna.

Quando decidi ser mãe, a única ideia que tinha sobre maternidade era a imposta pela normativa social e cultural patriarcal e eurocêntrica: seria um dos momentos mais incríveis da minha vida, um momento único que me iria oferecer um amor profundo e interminável. O meu coração haveria de vibrar a cada segundo. A felicidade haveria de inundar o meu lar com a doçura de uma criança. Tudo maravilhoso. Tudo muito bonito. Tudo o que eu queria.

Não. Foi. Nada. Assim. Ninguém me preparou para o que vinha a caminho. A
gravidez foi quase perfeita: não tive enjoos, não tive desejos estranhos, andei de bicicleta e continuei a trabalhar como DJ até aos cinco meses, subi a palco com oito meses. Ninguém me preparou para o que vinha a caminho.
Ninguém me preparou para a privação de sono. Muito menos que iria durar quase cinco anos. Ouvi rumores de que podia ficar com depressão pós-parto, mas não sabia se a tinha ou se estava só cansada, ou se eram só os tais Baby Blues, ou se me sentia perdida e desesperada, porque não dormia. Só descobri que passei por uma depressão pós-parto no ano passado, quando fui diagnosticada com distimia crónica.
Ninguém me preparou para a solidão interminável das noites escuras, em que as lágrimas me lavavam o rosto do desespero de amamentar de hora a hora.
Acomodar a cabeça na almofada por trinta minutos. Um bebé que chorava como se lhe espetassem facas, caso a cara que aparecesse a meio da noite para a confortar não fosse a minha.
Ainda assim, o que mais me custou foi o que aconteceu entre os pingos das
lágrimas que me caiam e que eu, acho, nem me dei conta. Ninguém me avisou do que acontece com a individualidade, que desaparece. Puf. Um dia tens nome próprio, sabes quem és, o que gostas de vestir, o que queres no futuro, para no momento a seguir, assim que se torna público que carregas uma vida, passares a ser a mãe. Deixas de ter nome, deixas de pensar coerentemente durante algum tempo (no meu caso foram anos), deixas de compreender como te gostas de vestir. E és a mãe. Nas consultas, na farmácia, no infantário, na rua: mãe. É quase como um ritual de sacrifício social: em troca de descendência, sacrificas a tua individualidade à sociedade.
Foi o que decidi, certo? Sim, quero ser mãe. Amo profundamente a Emmeline — única narrativa certa da normativa, a do amor eterno e incondicional mas, também, gostava de me ter amado no processo. De não me ter perdido. De
compreender o meu lugar. O da Lúcia, não o da mãe.
Levei anos a conseguir reunir de volta as peças do puzzle Lúcia. Agora estou a
montá-lo, peça a peça, e colo cada uma das peças do puzzle com super cola. Não vão as normativas sacudir a folha onde estou a completar o puzzle e, bummm, perder-me outra vez.
Quando engravidei, morreu uma Lúcia. No meu parto fiz nascer uma Emmeline e uma mãe. Só queria que me tivessem avisado que seria preciso parir-me novamente. Teria sido menos doloroso. Menos traumático.
Seis anos depois, vivemos todas juntas — Emmeline, mãe, Lúcia — e somos mais felizes e individuais. E temos esse direito.

Texto de Lúcia Vicente

--

--