O cordão Diário Comunitário
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4 min readNov 28, 2021

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Gostava que a história do nascimento do meu primeiro filho fosse uma história banal e cheia de felicidade. Em vez disso, mergulhou-me numa reflexão que mantenho até hoje. Foi o momento mais assustador na minha vida. Chegando às 41 semanas de gestação, o Sebastião não dava qualquer sinal de querer nascer. Eu sentia-me pesada e sem qualquer contractilidade. Andava kilómetros na esperança de desencadear o trabalho de parto. Mas nada. Até que chegou a data da indução. E lá fomos nós, esperançados que
tudo corresse bem. O problema da indução, pelo menos inicialmente, foi a contractilidade dolorosa e desorganizada. Muita dor, claro, sobretudo na região lombar, que me vergava e obrigava a ficar agachada. O trabalho de parto foi demorado. Por causa da bolsa rota, rapidamente fui transferida para o bloco de partos. Desde a chegada, que o Sebastião estava monitorizado. Podia andar, podia ir para a bola de pilates, tomei 2 banhos prolongados com ajuda de uma enfermeira extraordinária que me aguentou ao longo das 24h de todo o trabalho. A certa altura, exausta, propuseram-me para epidural, que
aceitei. O alívio foi extraordinário. Consegui descansar durante 2h. No entanto, talvez porque eu deambulava, creio que o cateter da epidural não permaneceu no sítio correcto. Isso fez com que as 2 repicagens que me fizeram não tivessem praticamente efeito nenhum. Ainda assim, mantive-me activa, positiva, pronta para receber o meu bebé. Quando finalmente atingi a dilatação completa, iniciei o período expulsivo. Estava obviamente exausta, a dor muito intensa, mas com a vantagem de conseguir participar nos esforços expulsivos. Eu sentia a contracção e colaborava como podia. Mas o período expulsivo alongou-se e o CTG deixou de estar tranquilo. Foi nessa altura que optaram por aplicar uma ventosa. E eu lembro-me perfeitamente de me avisarem que teria o meu bebé na contracção seguinte. Tinha 4 pessoas a
ajudar-me e uma senhora enfermeira, do meu lado esquerdo avisou-me que ira fazer pressão sobre o fundo uterino. Fez-me a manobra de Kristeller e eu senti o momento em que as minhas costelas cederam e a dor tipo facada, no meu tórax, começou. Ainda hoje tenho sequelas deste momento. Não consigo estar sentada por muito tempo sem dor.
O meu bebé nasceu, foi colocado sobre mim e finalmente tinha chegado ao fim. Pensava eu. Só que não. Com a saída da placenta, tive uma complicação rara do parto chamada inversão uterina. Acontece em 1 em cada 2000 a 50000 partos. É quando o fundo uterino colapsa sobre a cavidade
uterina, como se fosse uma meia do avesso. A dor que isto provocou foi indescritível. Reparem: eu tinha feito parte do meu trabalho de parto e todo o período expulsivo sem epidural e ainda assim vos digo que esta dor foi a dor mais excruciante que eu senti. Lembro-me de pensar que para morrer
não é preciso sofrer tanto. Com esta dor perdi completamente o controlo. Sei que gesticulava e gritava mas não sei ao certo se emitia algum som ou alguma palavra. O meu bebé foi tirado de cima de mim, fui posta de cabeça para baixo, fui encaminhada de emergência para o bloco operatório.
Ouvia gritos à minha volta e sentia que me picavam novos acessos nos braços. Foi quando a dor aliviou um pouco e tive a sensação mais ominosa. Senti uma descarga de água quente nas minhas pernas. Era a hemorragia. Senti o anestesista junto da minha cabeça e vi o laringoscópio. Puseram-me a máscara de sevoflurano (gás anestésico) e lembro-me de dizer “estou acordada! Não me intubem acordada!”. A voz do anestesista foi a minha bússola no meio do naufrágio: ele disse “façam-lhe propofol e etomidato” e eu soube que o alívio ía chegar, só que seria o fim da minha consciência. Se sobreviveria ou não, não saberia. Lembro-me de pensar “É isto. É o fim!” Num último momento, pensei na minha mãe. Reparem, não me lembrei mais do meu bebé, nem no pai do bebé, nem tive flashbacks românticos da infância. Pensei na minha mãe e em como não me pude despedir dela.

Acordei do outro lado da vida, numa unidade de cuidados intermédios. A voz rouca e entrecortada de ter tido um tubo na laringe, a dor abdominal, a sensação de vazio. O meu Sebastião ficou na neonatologia, num berço sozinho, enquanto eu fiquei na companhia de uma rapariga de 26 anos
com ruptura de aneurisma renal, uma mulher de 42 anos com um tumor do pâncreas e um homem jovem com um AVC hemorrágico. O parto colocou-me do lado da doença. O parto colocou a minha vida em risco.
Voltei a ver o meu bebé ao segundo dia. Contra todas as regras, pelas onze da noite, vieram duas enfermeiras da neonatologia com o meu Sebastião no seu bercinho transparente. A unidade onde eu estava, um open space com luz permanente, tinha sempre música ambiente, rádio. A música que acompanhou a entrada do meu filho, o nosso verdadeiro encontro, foi a música do Pedro Abrunhosa, “Quero voltar para os braços da minha mãe”. Eu sei, improvável. Mas a vida é feita de improbabilidades. Neste momento, à minha volta, os profissionais emocionaram-se. Mas eu sentia-me tão vazia, tão exausta, tão longe de mim própria que chorava por mim, pelo medo, pela minha vida e muito menos pelo meu filho.
Com este texto, quero sobretudo agradecer. Salvaram a minha vida. Aqueles profissionais, salvaram a minha vida. Reconheceram a gravidade da complicação e não desistiram de mim. Recebi 6 unidades de sangue de dadores anónimos, 3 de plasma, 3 de plaquetas. Tudo oferecido por dadores.
Da enfermeira que me deu 2 banhos enquanto estava em trabalho de parto, do auxiliar que me trouxe as gelatinas de morango, até à enfermeira maravilhosa que me lavou o cabelo na cama, já na unidade, o meu mais profundo e intenso agradecimento. O Sistema Nacional de Saúde salvou-me a
vida. E isso não tem preço.

Texto de Joana Martins

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