Sara Xavier
cordão
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2 min readOct 26, 2022

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Mãe de Mim

Sempre quis um menino, que o meu primeiro filho fosse um menino. Um varão, um menino da mamã, um irmão mais velho para os hipotéticos filhos seguintes. Sentia-me certa e segura de que ia ter um rapaz, tanto que a primeira roupa que comprei para a criança foi um fatinho de malha, azul, claro!

Até que na consulta a médica diz, em tom casual, que vem lá uma menina e nesse exato momento o meu primeiro pensamento foi “oh não”. Claro que no segundo imediatamente seguinte senti uma tremenda vergonha do meu pensamento. Eu estava grávida, o meu corpo que em tantos momentos eu critiquei e julguei e, por vezes, até maltratei, está a fazer uma pessoa. Mais! Eu não estou “só” a fazer uma pessoa: eu estou a fazer uma mulher, dentro de mim há agora dois uteros, carrego a minha filha e os meus possiveis futuros netos. No fundo, eu não estava apenas grávida: ao carregar um feto do sexo feminino, trago em mim toda a humanidade do mundo, o futuro.

Mas este pensamento, altamente romantizado perante a vergonha inicial de não ter ficado histérica de felicidade por ser uma menina, obrigou-me a questionar-me sobre o porquê e a conclusão veio pouco depois: eu não estava preparada para ser mãe de mim. Eu não estava preparada para que as minhas lutas fossem agora revividas por quem mais me dói, por quem mais amo, por quem eu queria que passasse pela vida forrada a papel-bolha.

Percebi que não estava preparada para que toda a gente lhe desse apenas e só bonecas e bebés, para que a maioria da roupa oferecida seja cor de rosa, para que as falas a ela dirigidas sejam abebezadas. Não estava preparada que disessem ao pai que tinha que comprar uma caçadeira ou que lhe comentassem as pernas redondinhas e os lindos caracóis (ela tem 2 anos!).

No fundo, eu não estava preparada para que a minha filha aturasse mesmas as merdas que toda a minha vida eu aturei e aturo mas, guess what? OUniverso, em toda a sua imensa sabedoria, envia-me não o filho que eu esperava mas a filha que eu preciso: decidida, lutadora, maria rapaz, destemida, minha. Esta filha é tão minha, tão pouco polida, tão livre, tão respeitada. Esta minha filha todos os dias me mostra aquilo que eu desde sempre devia ter sabido: que o problema não é nascer menina, o problema é o mundo ainda amar tão pouco e tal mal, as meninas que nele nascem. Esta minha filha, particula do Universo, que será tudo o que eu nunca fui, tudo o que ela quiser ser.

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