O cordão Diário Comunitário
cordão
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4 min readAug 4, 2021

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Perguntaram-me se podiam trocar os lençóis da cama. Olhei à volta,
envergonhada. Estava há dois dias a viver em cima do meu trabalho de parto
e nem pensava nisso. O resguardo era novo, mas os lençóis ainda tinham
marcas de sangue, de gravidez, de placenta.
A custo, levantei-me e vi as auxiliares mudarem a cama. Os lençóis
velhos abandonados no chão, com o meu sangue, o meu líquido amniótico,
com a minha esperança de um parto vaginal. Os lençóis novos esvoaçavam
no ar momentos antes de serem vigorosamente entalados na cama. E as
auxiliares experientes, silenciosas e cirúrgicas faziam o funeral ao parto que
esteve prestes a acontecer.
No dia 26 de Maio fiz a dilatação total, senti as dores fortes das
contracções, levei epidural senti a pressão do parto iminente. Levaram-me
para a sala de partos e, de mão dada com o meu marido nervoso, disse-lhe
que estava preparada, ia finalmente dar uso às básculas, ao curso de
preparação para o parto, aos exercícios Kegel. Estava a pouco tempo de
conhecer o meu bebé e de fazer parte do “clube” sobre o qual tinha lido
durante 9 meses. Estava preparada para saber se o parto era tudo o que
diziam e para reforçar que não queria episiotomia, que queria pele com pele
imediatamente, que queria que não cortassem logo o cordão. Mais um toque
para verificar a dilatação e silêncio. A enfermeira disse ao médico que o bebé
estava posterior. Já não havia líquido, ele não ia conseguir rodar.
Em dois segundos o entusiasmo passou a medo, a desilusão, a um
profundo sentimento de que tinha falhado. Algures no processo, devia ter
falhado. No curto caminho da sala de partos para o bloco percorri nove
meses de gravidez. Tinha bebido pouca água, comido muito açúcar, se
calhar tinha feito desporto a mais, ou a menos. E o stress… o stress de ter
mudado de casa, ter ficado sem trabalho. A culpa era minha.
No bloco não conseguia parar de tremer e, graças a Deus, o meu
marido pôde estar comigo. Atarantado, assustado, a tentar consolar-me e a
dizer que era melhor assim para mim e para o bebé. Que era só isso que
importava. Eu acenava que sim, que sabia, mas mentia. Não era uma
cesariana que queria.
Depois do parto, apesar das dores de me terem cortado ao meio, veio
só a bolha de amor de que tanto ouvira falar. Caramba se não era tudo o que
dizem: simultaneamente maravilhoso e assustador. A coisa mais dolorosa e
difícil, mas também a mais bonita. Uma onda que inunda com tudo o que é
bom e é mau.
Mas, durante semanas, enquanto amamentava à noite, conseguia
sentir os puxões de quando tiraram o meu filho de dentro de mim. Ainda vejo
as luzes e sinto o frio da sala de operações e um martelar mecânico na
cabeça que repete à exaustão que podia ter sido de outra maneira. Não
podia, mas a minha cabeça parece não entender isso.
Tudo o que tinha visto ao longo da gestação sobre partos
humanizados, descrições maravilhosas de partos vaginais… Nada disso me
representava. De repente, não pertencia ao clube das grávidas mas também
não pertencia ao àquele que achei que ia fazer parte, que tem o parto
humanizado como ideal e a informação como arma. Passei a sentir que na
conversa (tão importante) que se faz sobre o parto humanizado, não há lugar
para a cesariana. Como se fosse uma nota de rodapé de um livro que
ninguém lê. Eu própria tinha saltado os capítulos das cesarianas porque rejeitei a ideia de fazer uma desde o início. Não era só achar que não ia
acontecer, não queria mesmo. Não pedia um parto em casa, com uma doula,
mas não queria ir para o outro extremo, da cesariana. Claro que era isso que
tinha de acontecer. Disseram-me “os filhos escolhem os pais” quando, no
hospital, me disseram que estava a abortar, mas não estava. E disseram-me
“os filhos nascem como querem, como tem de ser” quando desabafei a minha
frustração.
Passei a sentir que tinha necessidade de justificar, de explicar perante
as caras desiludidas de quem me perguntava se tinha corrido bem. E, a meio
da noite, aquele martelar do que poderia ter feito diferente para ter sido de
uma maneira mais “natural”. Durante muito tempo, qualquer relato que lesse
sobre um parto vaginal bonito, bem sucedido, levava-me a desabar em choro.
Porque é que comigo não tinha sido assim? Não conseguia encaixar o que
tinha acontecido, como se tivesse sido só um sonho e a qualquer momento
me dissessem que, afinal, não tinha sido assim.
Agora, ao olhar para o meu filho, perfeito, lindo, de olhos curiosos, já
não me sinto nada menos. Mas demorei muito até aceitar o parto, a cicatriz
que vou levar para a vida e que, lamento, não vejo como uma cicatriz de
amor. Vejo como uma cicatriz de sobrevivência, a cicatriz necessária para ter
o meu filho comigo.
Agora, depois de ter aprendido como recuperar, como tratar da
cicatriz, como lidar com a quebra da expectativa, consigo ver o que não
interessa como foi. Todos os partos são válidos se a mãe e o bebé
conseguirem estar saudáveis para entrarem juntos nesta nova aventura.

O parto é só o início.

Texto da Catarina Bizarro

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