Ter filhos custa muito: ensaio para um fluxograma
I. FALSA PARTIDA
- Vamos lá! Tentar até acertar, demore o que demorar, de preferência depois de se saber como funciona o ciclo menstrual. SPOILER ALERT: A maioria não sabe.
- Ler O livro da Ana Kotowicz e preencher os papéis da adopção.
- Avançar para a ajuda médica: No Público esperam-se uns meses e as ajudas são limitadas; no Privado o tempo tem outro valor, por isso gasta-se uma fortuna até se conseguir, ou não, os ambicionados tracinhos no teste de gravidez. Em ambos, há que perceber se a ovulação (tal como amor) acontece, se a fase lútea é favorável, o que está menos bem e pode ser ajudado, se existe estrutura mental individual ou em casal para enfrentar um processo que falha mais do que vence.
Em qualquer dos casos pode ser necessária terapia, a solo ou de casal, para lidar com a espera, a frustração, a ansiedade, a angústia, o desespero, as perguntas incómodas (“Então e filhos? Quando é que têm filhos? Olha que qualquer dia já não dá para terem filhos!”), os natais, os “Porra, lá apareceu o período outra vez”, os aniversários dos filhos fofinhos dos outros.
E por falar em outros: há ainda que contar com eventuais exames para ver os níveis de estrogénio, progesterona ou de prolactina; espermogramas; ecografias pélvicas; histerossalpingografia (santinho!); acupunctura; vitaminas; ioga; aquela viagem para “Não pensar em nada que depois acontece, vais ver!”. Alguns são comparticipados — infelizmente a viagem não é.
II. PARTIDA
Está-se grávida e agora?
- No Público: o acompanhamento não custa nada
- No Privado: paga-se cada consulta, ecografia e exames extra a peso de ouro (ou a um peso simpático se o ouro for para uma seguradora)
Parto no Público:
- Zero euros
Parto no Privado:
- Pagamento de seguro mensal nos 365 dias que antecedem o parto para respeitar o período de carência (qualquer coisa como uns 50€ x 12)
- A partir de 200€ por parto (depende dos dias de internamento e da seguradora) — “É um conforto impagável!”, dizem. Os preços podem ascender facilmente a alguns milhares de euros, sobretudo em clínicas não comparticipadas
Parto em Casa
- Há custos associados a uma enfermeira-parteira e/ou doula — ou outro profissional
III. LARGADA
Se a experiência de parto correr bem:
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Se a experiência de parto não correr bem
- Fisioterapia (comparticipado)
- Fisioterapia pélvica (não é comparticipado mas há em alguns hospitais públicos)
- Terapia, a solo ou em casal (pode ser comparticipado)
- Outras intervenções que sejam necessárias
Extras
- Aulas de preparação para o parto e pós-parto: grátis no centro de saúde e em alguns hospitais; pago em centros especializados
- Consulta de amamentação (não é comparticipado)
- Doula (não é comparticipado)
- Cirurgia para remover penduricalhos que tenham saído e não queiram voltar a entrar (pode ser comparticipado)
IV. FUGIDA
Falta contabilizar o economato familiar, mais ou menos amigo do ambiente: fraldas, roupa, cremes, onde dormir, onde comer, onde tomar banho. O minimalismo diz que só se precisa de compressas, soro, roupa e fraldas em segunda mão. O maximalismo diz que há que açambarcar tudo o que é puericultura como se fosse o crash de papel higiénico de Março de 2020. [Futuros pais: o esterilizador não vale mesmo a pena, qualquer lavagem com água quente, fervedor ou chaleira eléctrica serve. É menos um trambolho em cima da bancada da cozinha.]
Ainda se pode incluir a pediatria do privado, a terapia sacro craniana, a especialista de sono, a babysitter ocasional ou aquela fada milagrosa. E o mais importante: comida, brinquedos e tempo (o bem mais precioso e raro de todos) .E o que dizer do berçário, da creche ou da ama. Da escola primária, preparatória, secundária e faculdade. Erasmus logo se vê e aquele estágio não remunerado na empresa de sonho vai sair caro a alguém.
Num país lindo como o nosso, mas que pouco faz pelo equilíbrio familiar, financeiro e laboral, e com um salário mínimo nacional de 665€, ter filhos custa mesmo muito.