Charles Ramon: “dançar é banir o impossível do dicionário”

Do budismo à Michael Jackson, dançarino de São Mateus une filosofia oriental ao hip hop

Laio Rocha
corpocasa
10 min readMay 6, 2019

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Foto: Laio Rocha / corpocasa

Subir em um palco nunca é fácil, ainda mais depois de 8 meses de molho. Charles pestanejou para aceitar o convite de protagonizar um especial do Michael Jackson, mas não pode recusar, o rei do pop é seu maior ídolo na dança desde pequeno, quando seu pai colocava os discos do cantor para rodar.

Foi como um sonho que não acabou. A apresentação aplaudida de pé pelo público, foi definitiva em sua vida. Quando as luzes se apagaram, as cortinas se fecharam e ele se deu conta, havia entendido que dançar seria o único caminho possível.

O jovem de 23 anos sentiu no reconhecimento dos familiares o impulso que precisava para se convencer que a dança, até então um hobby, seria a profissão em que poderia unir budismo e ação social, além de um mergulho cada vez maior no universo do movimento hip hop.

Morador de São Mateus, distrito da Zona Leste de São Paulo com mais de 430 mil habitantes, viveu a infância nas ruas do Jardim Santo André, soltando pipa, jogando bola e basquete, e fazendo muita “arte”. Os vizinhos não tinham paz com o moleque, tão bagunceiro que os menores entravam para casa quando ele e seus irmãos saiam para a rua.

Vista do Jardim Santo André da laje de Charles. Foto: Laio Rocha / corpocasa

Empinando pipa na laje, uma das mais altas da ladeira onde mora, se orgulha de lembrar como cortava todos os meninos das ruas de baixo, sempre com uma linha afiadíssima rebocada de cerol. Acontece que às vezes dá merda: passou a linha em um fio de eletricidade e deixou metade da rua sem luz. Quando a mãe descobriu, o chinelo cantou no lombo do garoto.

Atrás de uma pipa no telhado do vizinho, com o irmão mais velho, passou por uma ainda pior: o teto cedeu e os dois caíram de uma altura de mais de 2 metros. Acordou dentro de uma ambulância com um joelho arranhado, enquanto o irmão não teve a mesma sorte, caiu sobre uma pia onde cortou o pescoço, os braços e as pernas, passou 3 dias internado, felizmente sem sequelas.

Nascido em um berço de dançarinos, cresceu com o pai contando as histórias da adolescência e juventude em que curtia os bailes blacks, as primas curtindo os rolês black charms, os tios no samba rock e no soul funk e o irmão mais velho nos bailões do funk carioca e paulista.

O seu primeiro contato, no entanto, veio com um projeto social chamado Circo Escola, em seu bairro. Ali ele conheceu o break e começou a dar os primeiros passos na cultura hip hop. A sensação na época ainda era o black charm, que Charles tinha uma dificuldade imensa de reproduzir. Ele se encontrou nos passinhos robóticos e no popping, inspirados em Michael Jackson, forma de continuar aprendendo e se destacar no grupo de amigos.

O curso foi encerrado depois de um ano e meio, mas ele não parou e foi em um lugar inusitado que se aprofundou na arte: o budismo. A família segue a religião oriental há muitos anos, foram um dos primeiros da área e acabaram trazendo outras famílias da comunidade para as reuniões.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Dentro desses grupos, foram criados festivais de calouros de música e dança, onde os jovens se organizavam para as apresentações que eram divididas por categorias etárias, do infantil ao juvenil. Ávido por uma bagunça e carismático, o bailarino na primeira participação montou sua crew e na segunda coreografou os mais novos.

Apesar do esforço e dedicação, jamais passou das quartas de final dos campeonatos, mas fica feliz de relembrar como, mesmo com a derrota, sua crew foi a única que se manteve após as competições, fazendo shows e ensaios, geralmente em três locais, na rua de um amigo, na sede budista de São Mateus e na Fábrica de Cultura de Sapopemba, distrito vizinho ao seu.

“Por ser uma filosofia humanista e nascer na periferia, onde mais ou menos funciona a lei do cão, isso influencia muito o meu corpo, porque sempre tento trazer o sentimento de onde eu vim: da periferia e do humanismo, misturar a dança com as minhas origens e filosofia budista”, explica Charles.

Foi por volta desse período, aos 11 anos, que estar na rua passou a ter outro contorno em sua vivência. A primeira foi experimentar um cigarro escondido. Não recusou, era só uma brincadeira. Depois foi a vez de uma paranga de maconha. Não foi em frente, recusou mas continuou com os camaradas. Em seguida, foram roubos. O alvo era um bar do bairro. Ficou meio bolado, mas ainda assim ficou com os parceiros.

Quando a mãe deu um presente para o irmão e não para ele, por ter desobedecido, usou do mesmo recurso: foi na vendinha e pegou na mão leve um brinquedo. Botou embaixo da blusa e saiu andando, ninguém viu, o roubo perfeito. Só que não. Chegando em casa, foi fazer inveja para o irmão e a mãe viu.

“Foi a pior coisa que fiz na vida, me arrependo até hoje de ter feito isso. Peguei o boneco, minha mãe me cacetou esse dia, no meio da rua. Voltei no mercado, tive que pedir desculpas para o gerente. Minha mãe ficou com a maior vergonha, falou para nunca mais fazer isso”, relembra o bailarino.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

A mãe não tinha vida fácil, costureira autônoma, tinha que dar conta de 5 filhos, enquanto o marido trabalhava em 3 horários em uma indústria multinacional de materiais de construção. Os filhos mal o viam, somente no único dia de folga que tinha na semana, em que às vezes passava descansando para se recuperar da intensa jornada.

“Antigamente eu não entendia porque eu era da periferia e sofria preconceito, por ter um pai negro e ser budista. Não tenho a religião mais seguida, não era católico ou evangélico, e tentaram me isolar, mas nunca conseguiram, em sempre fui ligeiro”, recorda.

Alguns anos depois, aos 16, foi a vez dele entrar na rotina do pai, passou a ajudá-lo no transporte dos materiais tirando uma merreca por mês, o seu primeiro salário. Esse foi só a primeira vez de muitas que precisou trabalhar com o patriarca.

O gerente da empresa gostou do seu empenho e questionou se não queria trabalhar dentro da loja, como repositor. A oportunidade o fez brilhar os olhos e aceitar na hora. Esse período marcou um distanciamento da dança, uma contusão no joelho que o tirou das pistas por 8 meses e uma sequela que até hoje tem em seu corpo.

Foi uma coisa besta, na verdade. Um passo comum em seu dia a dia, o top rock. Pisou em falso e rompeu mais da metade dos ligamentos. A dor lancinante o levou ao hospital, onde o médico deu duas opções: operar ou passar por um tratamento de 6 meses de fisioterapia. Escolheu a fisio.

Jovens nós sabemos como são. Já com 18 anos, trabalhando CLT e com dinheiro no bolso, me respondam: ele fez o tratamento certinho? Tomou todos os remédios no prazo? Se cuidou bem? A resposta, é óbvio, não. Ao final da recuperação, o doutor viu que a evolução foi pequena e deu um ultimato: se não se cuidar, não dança mais. O choque deu certo, em 2 meses estava melhor.

A volta, entretanto, ainda levou um bom tempo, e somente mais de 1 ano depois de se machucar estava se apresentando, mas ainda dividido entre o trabalho e o hobby, que lhe tomava cada vez mais tempo. A decisão de torná-lo profissão veio somente aos 20 anos de idade.

“Eu não fazia passo de chão, de break, porque não aguentava. No frio não aguentava dançar, por causa do ligamento, ele é um pouquinho machucadinho, não forço tanto. Ele não dobra mais, mas eu ando normal, só sinto no frio, começo a mancar se andar muito”, detalha Charles.

Escolher a dança como modo de vida veio acompanhado de duas etapas: largar o emprego e estudar na ETEC de Artes, experiências que mudaram completamente a sua ligação com a arte, ampliou os seus conhecimentos e trouxe um novo olhar sobre a vivência periférica, oriunda do contato com outros bailarinos de periferias.

Nem tudo são flores. O curso teve que ser interrompido após o primeiro módulo, de 6 meses. Apertado de grana em casa, os pais passaram a pressioná-lo para gerar renda. A solução veio bem perto, o tio idoso precisava que alguém cuidasse dele. Sempre atencioso e comprometido, aceitou o emprego oferecido pela tia.

O que não esperava era o tamanho do trabalho, que passou a ocupar muito tempo em sua rotina. Vítima do alzheimer, o tio precisava de acompanhamento constante, porque qualquer vacilo ele “aprontava”. Com isso, começou a perder aulas e conteúdos, as notas caíram rapidamente e seu foco foi se perdendo.

Percebeu que o melhor a se fazer era trancar o técnico e esperar para voltar no próximo semestre. Nesse meio tempo, aconteceu o pior. “Ele acordou bem, falou que viu o filho, confundiu com meu irmão. Ele tinha ficado muito ruim e depois deu aquela melhora, que é um aviso. Pela manhã minha mãe me chamou: ‘Charles, o Pereira não está respirando’. Vim correndo, tentei fazer massagem cardíaca, mas ele acabou falecendo”, descreve com pesar o bailarino.

Pouco tempo depois, retomou as aulas e se aproximou de um amigo, que rapidamente também tornou-se um professor. O dançarino de locking, Guilherme Rosa, apresentou-lhe as danças urbanas de um jeito novo e deu o impulso necessário para o jovem avançar na carreira.

A pergunta que não queria calar na cabeça dele passou a ser: como vou ganhar dinheiro com a minha profissão? A dúvida foi solucionada naturalmente. Passou a ser convidado para dar aulas para crianças e se apresentar em eventos da sua quebrada.

Aniversários de 15 anos e casamentos foram os primeiros bicos do dançarino, que viu nesse mercado uma oportunidade a ser explorada e um meio de ganhar grana rápida. Além disso, conseguiu um emprego meio período em uma empresa de logística próxima de casa, o que deu segurança financeira para ele e sua família.

“Ser artista é uma forma de protesto para as pessoas verem mais a periferia, não só o lado do centro, ver que não é só uma pessoa que tem dinheiro que vai ter uma possibilidade de ser artista. Muitos artistas renomados da dança saíram de uma periferia, se eles conseguem porque eu não consigo? Nunca esquecer as origens e trazer o seu protesto para fora, mostrar para as pessoas que eu sou da periferia e tenho potencial, isso é a coisa que mais vale”.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

As coisas começaram a acontecer rapidamente. Em pouco mais de 2 anos após se formar na ETEC, muitas vitórias foram conquistadas, como a entrada no grupo Percussa Lockers, que unem percussão corporal e o ritmo do locking, e para o grupo Magic Five, especialistas no popping, além do início no House Dance, com orientação do profissional Hugo Campos.

“Todo dia eu saio de casa para correr atrás do meu, sempre vivi a distância. Viver é sair de quebrada em quebrada e tentar fazer o seu. Significa muito não esquecer a minha raiz: eu estou aqui, sou feliz, sei onde nasci e quais são as minhas origens. Isso é o mais importante, tentar ser o mais humano possível. A minha filosofia de vida budista é sempre tentar trazer a felicidade para as pessoas, isso é mágico”, afirma Charles.

Hoje aos 23 anos e atuando em dois coletivos, Charles olha para frente sonhando em um dia ter seu próprio projeto social na quebrada, ensinando crianças com realidades muito semelhantes à dele o valor da arte e cultura para o desenvolvimento comunitário e pessoal.

“É muito difícil, é preciso perseverança e fé no que você faz e transformar em coragem para enfrentar a família. Eu até entendo o lado deles, ter um filho de 23 anos que se mata de trabalhar pra ganhar 100, 200 reais para viver, nem um pai quer ver. Então é banir o impossível do dicionário, isso que eu falo para as pessoas, você tem potencial o suficiente para conseguir. O esforço nunca mente, é o que meu irmão fala cada vez que eu termino uma apresentação”.

Ensaio

O ensaio foi realizado no Jardim Santo André, em São Mateus, na laje onde Charles e seus irmãos passavam o dia empinando pipa durante a infância.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
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