Francisco Renner: “Quando você é favelado, não é ensinado a sonhar”

Malabarista do Primavera, Zona Sul, realizou sonho de ser professor ensinando arte para jovens da sua quebrada

Laio Rocha
corpocasa
10 min readOct 23, 2019

--

Texto e fotografia: Laio Rocha

Maranhense, Chico chegou com apenas 1 ano na cidade de São Paulo, precisamente no extremo sul. O bairro do Primavera foi onde seus pais aportaram, na estreita viela da Passagem 2, onde, naquele tempo, a rua era de terra e as casas barracos de madeira de no máximo dois cômodos.

O espaço pequeno abrigou sua família, tios e madrinha que, assim como eles, vieram ganhar a vida na terra das oportunidades. E ganharam.

De lá para cá, são 24 anos morando na mesma rua em que ambos passaram por imensas transformações. A viela ganhou asfalto, mas ainda falta saneamento, sua casa tornou-se um sobrado “triplex”, como diz Criolo em Grajauex, veio ao mundo sua irmã mais nova, jogadora de futebol, e ele, despretensiosamente, encontrou nas claves meio de vida e de impacto social.

Educador do Circo Escola Grajaú, Chico faz um trabalho de sensibilização através dos malabares, desenvolvendo uma série de habilidades com crianças e adolescentes de 6 a 17 anos, que tem vivências muito parecidas com as suas no mesmo bairro em que cresceu e se formou.

Apesar disso, em sua própria trajetória o encontro com a arte aconteceu muito tarde. Foi somente quando conheceu eventos como o Sarau da Cooperifa, Sarau do Binho e o Sarau do CEU Alvarenga que começou a entender que arte ia além de uma aula de desenho e pintura na escola.

No entanto, acompanhar esses eventos não deu autonomia suficiente para ele se entender enquanto artista. O sentimento de incapacidade de fazer o que aquelas pessoas faziam estava incrustada no seu olhar.

Mesmo assim, a vivência com os coletivos de cultura periféricos somado ao sonho de ser professor despertou no jovem a iniciativa de cursar uma universidade nessa área. Com 17 anos, prestou vestibular para o curso de Letras, Artes e Mediação Cultural na Universidade Federal de Integração Latino Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu (PR), cidade conhecida por ligar o Brasil com o Paraguai.

O acesso a um Ensino Médio de qualidade em uma escola particular, na qual entrou por meio de uma bolsa de estudos, o qualificou para pontuar no ENEM e chegar ao Ensino Superior, mas esse privilégio não foi suficiente para retê-lo na academia.

“Caralho, eu sou analfabeto?”

“Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade, ela é particular (…) Livros tão caros, tanta taxa pra pagar, meu dinheiro muito raro, alguém teve que emprestar (…) E depois de tantos anos, só decepções, desenganos”, a letra de Pequeno Burguês, de Martinho da Vila, ilustra bem a vida do jovem de periferia na universidade. Com Chico a realidade não foi diferente.

Longe da família em um estado desconhecido aos 18 anos, se deparou com um ensino que mesmo a sua formação em uma escola particular não dava conta. Desestimulado pelo curso que não conseguia acompanhar e encantado com a as vivências novas e potentes que encontrou nos artistas da fronteira, rapidamente foi se afastando dos livros e se aproximando de outros rolês.

“Eu me sentia muito diminuído, porque era foda, pegava os textos para ler e falava, caralho, eu sou analfabeto? Eu não entendia nada! Isso que no Ensino Médio tive uma oportunidade de estudar em uma escola melhor, tá ligado, mas mesmo assim eu não entendia nada. Parecia que o bagulho não entrava na minha cabeça, e a academia é foda, faz você se sentir mal”, conta o malabarista.

Chico não é uma exceção. A falta de representatividade, a dificuldade em acompanhar os conteúdos, os poucos recursos financeiros para se sustentar e a distância da rede de proteção familiar, levam milhares de jovens que realizaram o sonho de entrar no Ensino Superior a desistirem.

De acordo com o Censo do Ensino Superior do IBGE de 2015, apenas 12,8% dos jovens negros brasileiros entre 18 e 24 estão nas universidades. Quando olhamos para a docência, são somente 16% os professores negros, percentual que estreita ainda mais quando se olha para a pós graduação, mestrado e doutorado. O resultado dessa equação é uma taxa de 27,6% de desistência.

Morando perto da fronteira, ele foi se aproximando dos artistas viajantes, pessoas que perambulam pelo mundo vivendo de arte, trocando seus conhecimentos e desbravando novas paisagens. Foi nesse momento que teve o primeiro contato com as claves.

Desse momento em diante, a universidade foi ficando cada vez mais para escanteio e os treinamentos tornaram-se sua verdadeira escola. Autodidata, foi pegando um pouquinho de aprendizado com cada um dos viajantes que atravessavam o seu caminho.

“Tem uma parada que eu acho muito bonita no malabares, que é você ir aprendendo um pouco com cada pessoa que encontra pela vida, e, de certa forma, aquilo que aprendeu cria uma memória dela”, explica o artista. “Ao mesmo tempo, é você por você, fazendo o bagulho, martelando horas até ele sair”.

Em pouco tempo a situação tornou-se inconciliável e aconteceu o inevitável. Após finalmente encontrar a sua vocação dentro das artes, decidiu largar a academia e apostar naquilo que de fato estimulava o seu potencial e o seu espírito. A decisão não foi nada fácil.

“Nós da quebrada, pessoas pretas, temos que ocupar a academia sim, porque ela não vai mudar por conta própria. Temos que tomar de assalto mesmo, para que a gente também vire referência, mas eu não sou obrigado. Não precisa ser eu. Têm várias formas da gente atuar no mundo, tenho amigos que estão lá até hoje e é muito importante, mas não é o único caminho de vida”.

Queria largar a faculdade pra sair viajando pelo mundo, como eu conheci muita gente que fazia, mas eu parei para pensar, sendo da quebrada, morando na favela, criado como eu fui criado, não dava para fazer isso, tinha que fortalecer com os meus véio’ também”, relembra.

“Estou correndo atrás de muita coisa que durante a vida não me foi oferecida”

A necessidade de prover para a família após largar a faculdade falou mais alto e deu um novo impulso para Chico correr atrás de meios para estudar a arte circense. Simultaneamente, passou no processo seletivo para o curso de Iluminação na SP Escola de Teatro, no Centro, e entrou no programa vocacional para estudar teatro no Grajaú.

A nova pesquisa veio de uma demanda do malabares. Se apresentando em faróis por toda a cidade, não tinha muita desenvoltura com o público e foi aconselhado por amigos a se aprofundar nas artes cênicas para desenvolver essa habilidade.

O que seria um suporte tornou-se uma paixão. Os processos de criação no teatro foram tão intensos que deram origem ao coletivo Entre Vielas, em que produziram o espetáculo No Corre: Uma Manifesto Periférico, contemplado com o edital VAI.

“Uma das nossas apresentações foi na Fábrica de Cultura do Capão, colaram 150 pessoas, todo mundo de ensino médio. Foi a melhor apresentação. A gente morrendo de medo e, no começo, eles fizeram uma piadinha ou outra, mas de repente estavam juntos com a gente, sabe? Eles se viram no que a gente fala, porque a gente fala da nossa vivência, das nossas questões, questões de pessoas que viveram na favela e que tem determinadas vivências, isso gera uma representatividade”.

O curso de Iluminação, por outro lado, abriu novas oportunidades no mercado de trabalho, o que possibilitava a ajuda financeira nas contas de casa. Além disso, o conectou com série de artistas de toda a cidade, ampliando sua rede.

Só essa renda, no entanto, não era suficiente para mantê-lo e colaborar com os parentes. Foi quando surgiu a oportunidades de ser educador no Circo Escola Grajaú, um desafio que, pelo horário, o impediria de continuar os estudos. Escolheu trabalhar.

“É uma experiência de educação que eu acredito muito: eu aprendo com eles, eles aprendem comigo”

Ao sair de São Paulo sentido Foz do Iguaçu, aos 18 anos, o seu sonho era ser professor de arte. Aos 22, esse desejo foi realizado de uma forma bem diferente do que previa: ensinando jovens da sua quebrada a arte circense do malabares. E não poderia ter sido de forma melhor.

Há 2 anos como educador, a experiência impactou a sua forma de ver o mundo e principalmente de se expressar, os seus movimentos e a sua relação com a técnica. Dividido entre esses dois mundos, é na espontaneidade das crianças que ele vê novos caminhos de criação.

“Eu vejo eles criando coisas que acho geniais, e com pouca técnica, isso acaba me alimentando muito como artista. É uma troca, literalmente, eu trago coisas que tenho da minha trajetória e ali eles fazem. Para mim, acaba mandando um retorno”, descreve.

A experiência educacional vem acompanhada por uma social, na qual ele se depara com a realidade de vulnerabilidade e exclusão de adolescentes e as consequências que isso gera em suas vidas. Educar nesse caldo é muito complexo e nem sempre o resultado é mensurável.

Somado as questões diárias há a insegurança da continuidade do trabalho, sempre ameaçado pelos constantes cortes de verbas do governo do Município de São Paulo, que vem fechando uma série de serviços sociais para as periferias.

Em 2019, o prefeito Bruno Covas (PSDB), decretou a renegociação de contratos na área de assistência social, saúde e limpeza urbana, autorizando cortes na ordem de 250 milhões de reais, ou 15% das verbas. A decisão é alvo de manifestações dos trabalhadores e dos atendidos.

“A gente vive lá com uma incerteza de como vai ser o serviço, sabemos que quem está governando agora, em todas as esferas, municipal, estadual, federal, pouco se importa para Assistência Social, para investimento na cultura e educação, porque não é uma parada que dá resultado financeiro imediato”, protesta.

Manejar esses polos e equilibrar a postura para fazer o melhor é a missão diária. As adversidades são grandes mas a vontade de dar novas possibilidades para os jovens é maior e é o que guia o trabalho dos educadores que estão na linha de frente.

“Eu pergunto para a molecada, de tipo, 8, 9, 10 anos, às vezes até mais velha, qual o sonho deles. Eles respondem: quero ser entregador de pizza, segurança, trabalhar no mercado. Mano, não estou desmerecendo esse trabalho, que são importantes e tem que ser feito, mas não é como se eles falassem isso porque escolheram de um catálogo de profissões, é porque são as profissões que eles conhecem. Elas têm que poder escolher ser médico, engenheiro, entregador de pizza, segurança, jogador de futebol, ator, malabarista etc. A criança tem que poder escolher sonhar”.

“Me interessa muito mais mostrar algo que pareça ser possível”

Conhecer essas histórias que atravessam a sua própria trajetória trouxe novos elementos para a arte do malabarista. Explorando essas áreas, sentiu a necessidade de um estudo mais minucioso sobre o seu corpo, movimentação e ritmo. Foi o momento de encontro com a dança.

“Tem uma vertente que diz que todo movimento é dança, como andar pela rua ou segurar no ônibus. Se tudo é dança, então fazer malabares é dançar também, pois tem um ritmo e um desenho”, elucida.

Foi dessa forma que chegou ao Unidos Pela Dança, grupo de danças urbanas localizado em Parelheiros e no Grajaú, formado pela dançarina Jéssica Alves que forma dançarinos de todas as idades gratuitamente.

Unindo circo, teatro, dança e educação, Chico procura construir uma expressão do “possível”, em que as pessoas possam enxergar as suas questões sociais e sentirem-se capazes de fazer arte. Esse estilo vem em contraponto ao “showman”, aquele artista que faz coisas tão incríveis que o público sente-se completamente incapaz de fazer.

Além disso, expressa sua própria sensação durante boa parte da vida, de sentir-se incapaz de produzir arte. Aproximar as pessoas do processo e fazê-las sentir-se capazes é uma resposta aos seus dilemas.

“Na minha vida sempre foi dito que não era possível. Estou tentando quebrar essa barreira, porque temos que fazer as coisas que temos vontade apesar da falta de estímulo”, pontua. “No mundo que a gente está, o sonho é muito atacado, não somos ensinados a sonhar, e quando você é favelado, muito menos”.

Ensaio

Ensaio foi realizado na Passagem 2, dentro da casa do Chico e na viela, em meio ao jogo de futebol das crianças. A segunda parte foi feita no campo Democrata, onde o malabarista ensaiou durante muitos anos enquanto via sua irmã jogando bola com os primos e amigos.

--

--