Jorge Boog: “Independente de onde estou, a periferia sempre está presente”

Artista de Guarulhos encontrou nas danças urbanas motivação para superar dificuldades

Laio Rocha
corpocasa
7 min readJul 26, 2019

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Foto: Laio Rocha / corpocasa

Em um sábado comum, Jorge Luiz comprava alimentos na feira do seu bairro, Cidade Industrial Satélite, em Guarulhos/SP. De passagem por uma barraquinha de DVDs piratas, deu de cara com um título que o intrigou, um campeonato internacional de dança chamado Just Debout.

Chegando em casa, colocou o CD para rolar e se impressionou com dois brasileiros na disputa, os dançarinos Frank Ejara e Mr. Jeff. Depois de dias vendo no repeat o vídeo, a dupla inevitavelmente tornou-se a maior referência de danças urbanas para o garoto, que só começava a ensaiar seus primeiros passos no estilo.

O pai, que atravessava a cidade todos os dias para o trabalho no centro de São Paulo, descobriu uma roda de dança interessante na região e combinou com o filho que o levaria para conhecer.

Quando finalmente os dois foram para o evento, na Galeria Olido, ele ficou assustado. Com medo de entrar, olhava pelas janelas o movimento. “Você dança todo dia em casa e hoje não vai dançar?”, instigou o pai. Tomou alguma coragem para entrar quando, de repente, viu à sua frente Frank Ejara e Mr. Jeff se apresentando.

“Isso ficou demarcado como o momento em que decidi: é isso que eu quero, é isso que eu vou seguir”.

“Falar em dança, tudo partiu daqui, tudo começou aqui”

Foto: Laio Rocha / corpocasa

O bairro de Cidade Satélite Industrial fica no distrito de Cumbica, em Guarulhos/SP, cidade da região Metropolitana de São Paulo, que possui a segunda maior população do estado, com quase 1,4 milhão de habitantes, e a quarta maior economia, alimentada principalmente pelo setor logístico.

Apesar dos números, a cidade apresenta uma série de questões como alta desigualdade social, baixa urbanização, falta de equipamentos de lazer nas periferias, além dos preços exorbitantes das tarifas dos transportes públicos, que chegam a superar os 7 reais.

Ocupado majoritariamente por centros de distribuição de empresas, a quebrada do dançarino tem um fluxo constante de caminhões de carga e descarga. Quando as firmas fecham, as ruas são vazias e escuras, o que tornou a região conhecida por desova de corpos, em especial em um pequeno córrego que margeia as proximidades.

Até pouco tempo, as vias eram de terra e quando chovia a água subia e tomava as casas. “Quando aqui era de barro, a gente ia fazer compra e, se chovia, já ficava por lá, com aquele pensamento, está mó longe, como vamos fazer pra voltar para casa com o rio transbordando?”, conta.

Foi neste cenário que aos 7 anos ele conheceu a dança através de um primo mais velho. Nas festas de família, o parente que morava no centro de São Paulo e frequentava os bailes blacks, mandava alguns passos mas, no princípio, não o impressionaram muito.

Passou algum tempo e de bobeira começou a imitar o primo. Com isso, toda festividade familiar ganhou o momento da dança, no qual o mais velho apresentava o que estava aprendendo e ele imitava os novos movimentos.

A insistência em aprender ultrapassou o festejo e tornou-se brincadeira com os amigos, ensaios em casa sozinho e rapidamente uma obsessão. Sem computador ou celular, o bailarino passava o dia vendo vídeos repetidamente na Lan House mais próxima, assim gravava os passos na mente e tentava reproduzi-los ao voltar.

Foi dessa forma que aprofundou seus conhecimentos nas danças urbanas e chegou a novas referências, entre elas o campeonato de breaking Red Bull BC One e o trabalho dos bboys Pelezinho e Lilou.

O ponto de virada dessa trajetória foi quando conheceu o Electric Boogaloo, grupo precursor da dança urbana Popping que se notabilizou durante os anos 1980 durante o boom do hip hop. Em seu auge, estrelaram o filme Breakin’ 2: Electric Boogaloo, no qual a movimentação robótica ganhou as telas de cinema.

Até então dividido entre o popping e o breaking, decidiu seguir o ritmo do grupo norte-americano e abandonar a dança no chão, por um motivo bastante prático: por dançar em casa, no concreto, eram recorrentes machucados, luxações ou lesões e, consequentemente, os puxões de orelha dos pais.

Mesmo assim, os familiares sempre apoiaram a sua dedicação à arte e impulsionaram a sua jornada quando preciso. Foi o incentivo deles que levou o bailarino a arriscar um curso de dança na Fábrica de Cultura da Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte de São Paulo.

“Vou te dar como um cubo mágico e você vai descobrir o que fazer”

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Ao entrar nas aulas de Funk Styles da Fábrica de Cultura, Jorge se deparou com um estudo completamente novo, no qual, além dos passos, ele conheceu a história, a luta e o significado de cada uma das danças urbanas. Neste processo, ele passou não somente a se movimentar na cultura das ruas, mas a se reconhecer na resistência social que emana dele.

“Comecei a dançar o Locking, que era uma coisa que até então caçoava. Eu via os caras todos coloridões e chamava de dança de palhaço. Só depois eu vi o porquê da dança daquele jeito, da necessidade de ser alegre, colorida e chamativa. É uma parada que na época era para chamar atenção mesmo, um movimento de libertação das pessoas”, explica.

A orientação do professor Thiago Meira, conhecido como Boogaloo Begins, do grupo Chemical Funk, foi decisiva nesse processo. Foi ele quem introduziu o jovem nesse universo e, quando demitido da Fábrica de Cultura após um corte de pessoal, iniciaram juntos o grupo Urbanidades, composto por alunos das oficinas.

O “cubo mágico” entregue por Boogaloo Begins para seus alunos alimentava um desafio: o que você quer fazer da sua dança? A provocação tomou de assalto o garoto. A resposta veio em um cartaz anunciando uma audição para o Núcleo Luz, projeto voltado para jovens de baixa renda vinculado às Fábricas de Cultura.

Aprovado na seleção, ele encontrou na nova escola e se deparou com algo totalmente diferente do que imaginava. Empolgado para avançar nas danças urbanas, começou do zero em novas movimentações no ballet, contemporâneo, dança afro, danças brasileiras e dança de salão.

Se desvincular das expectativas iniciais e se deixar encantar pelas novas experiências corporais propostas, foi difícil e levou tempo. Isso somado à rotina extenuante, em que precisa levantar às 4h30 para pegar o ônibus às 5h30 e chegar antes das 8h no Bom Retiro, quase o levou a desistir do sonho.

“O tempo foi passando e eu vi que tudo ajudava, que é um lugar onde eu posso estudar e ir pra frente com a minha dança. Quando rola de estar fechado, estar em um lugar desse é ruim pra caramba, porque você não vai pra frente nem com a sua dança, nem com a que eles estão dando lá dentro”.

“Tem muita gente daqui que sabe que eu danço, mas acha que saio de manhã pra trampar em um escritório”

Foto: Laio Rocha / corpocasa

“Mas você trabalha com isso?”, essa pergunta não é incomum para quem trabalha com arte e é ainda mais comum para quem vem da periferia, onde é quase impensável ganhar dinheiro dessa forma.

O principal fator desse estranhamento vem da dificuldade de gerar renda com isso e, quem está no corre, sabe que a coisa está russa. Jorge consegue o seu sustento através de uma bolsa do Núcleo Luz, uma ajuda para o custeio da alimentação, transporte e no orçamento doméstico.

O bailarino conta que certa vez, voltando a noite após um evento, foi enquadrado por uma viatura da Polícia Militar. O policial questionou de onde ele vinha e o que estava fazendo. Quando escutou que estava dançando e trabalhava com isso, custou acreditar. Foram minutos de tensão até finalmente o oficial liberá-lo.

“Não entrava na cabeça dele. Eu fiquei pensando: mano, se fosse em um outro lugar, até mesmo em um outro contexto, será que ia ter essa parada? Pensando assim: você é preto, a roupa que você está usando, sempre tem, mas, dependendo do lugar, não ia rolar nada. Aqui não, mano, aqui não entendem”, reflete.

A vivência periférica, nesse sentido, impõe uma série de barreiras que todos os dias o jovem precisa superar para alcançar seus objetivos. A maior delas, no entanto, é muito básica: sair e ter a certeza de que irá voltar.

“Primeiro penso que, além de ser da periferia, sou negro. Vejo que independente de onde eu estiver, a periferia sempre está presente, porque marca, na sua postura, o jeito de andar, falar, se vestir, as músicas que escuta. Por isso, sempre me vejo nesse lugar de luta, de resistência, tenho que estar preparado para tudo que vai acontecer”, diz o dançarino.

Ensaio

O ensaio foi realizado no bairro de Cidade Industrial Satélite, em frente à casa onde Jorge reside com toda a sua família durante toda a sua vida e na qual deu seus primeiros passos na dança.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa

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