Leandro Cazão: “Nunca esqueça de onde vem”

Dançarino da zona norte mostra que é possível falar sobre política e a cultura usando o corpo

Laio Rocha
corpocasa
6 min readApr 15, 2019

--

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Você, morador de periferia, sabe quais as brincadeiras de cada estação? Pipa, bolinha de gude, pega pega, taco, pião, esconde esconde, cada qual tem sua época do ano. Verão, duas coisas vão brilhar no céu: o sol e a pipa. Gritaria na rua: mandado!

No Jardim Flor de Maio, extremo norte de São Paulo, uma brincadeira diferente entrou no meio da molecada da Rua Begônia: a dança. O pião de madeira foi trocado pelo pião com a cabeça, e pasmem: no asfalto. “O mano Paraíba era doido”, conta dando risada, Leandro Ferreira da Silva, 20 anos de idade, conhecido pelo apelido “Cazão”, em referência à semelhança com o ex-jogador e comentarista Casagrande.

“Tudo começou aqui mesmo, em frente de casa. A gente colocava uma música e passava o dia todo dançando”, conta o dançarino, que nessa época tinha apenas 12 anos. “Naquele momento as minhas maiores referências eram os meus irmãos, que curtiam House Music nos rolês e faziam os passinhos marcados”.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

A brincadeira na rua continuava em casa, em que o DVD do Michael Jackson não parava de tocar, enquanto o garoto tentava imitar o rei do pop. Cada passo do ídolo era repetido à exaustão até que finalmente a imitação ficasse parecida. Outra inspiração foram os gêmeos Les Twins, em quem procurou seguir à risca o estilo durante muitos anos.

Esses foram os primeiros passos da carreira do jovem, que hoje vê nesta incansável vontade de aprender proporcionada pela dança, uma forma de levar conhecimento crítico e motivação para as pessoas.

“Um passo de dança nunca é fácil de aprender, eu nunca tive facilidade, mas sempre tive vontade de fazer a parada. Estar todo dia nessa disciplina de treinar para melhorar, me torna uma pessoa melhor. Através disso é possível mostrar que da mesma forma que você aprende um passo, você pode conquistar uma situação, pode estudar uma matéria como geometria e matemática”, explica.

A formação é totalmente atravessada pelo senso crítico e social, bases dos 6 anos em que estuda na Fábrica de Cultura da Java Rural, escola que moldou e possibilitou o seu desenvolvimento, mas também deu consciência para entender as problemáticas e potencialidades da vivência periférica.

A fala do jovem, sempre ilustrada por passos, é lúcida e fluida, como um professor dá explicações didáticas sobre os ritmos nascidos da soul music e funk music nos anos 1970 e 1980 nos EUA, as chamadas funk styles.

Esse conhecimento tem origem e foi primeiro elaborado pelos mestres Ivo Alcântara e Naty Glits, professores de danças urbanas na Java Rural e integrantes do grupo Chemical Funk. Foram eles quem iniciaram Leandro no universo das funk styles, além de apresentá-lo à filosofia e vivência do hip hop.

Como se estivesse contando sua própria vida, o jovem explica como a primeira das danças urbanas, o Locking, foi criado pelo dançarino Don Campbell, que dançando como uma galinha ao som do funk chicken do lendário Rufus Thomas, fazia movimentos diferentes da maioria, usando o cotovelo. Essa mudança deu origem ao passo chamado locking, que dá nome ao ritmo.

Sobre as aulas, o bailarino reflete que “o foco não era tanto se eu queria me tornar um dançarino com qualidade, mas sim uma pessoa melhor, utilizar a dança para a construção de uma pessoa com um convívio melhor em sociedade”.

“A minha forma de pensar dança é como eu posso fazer dela algo de melhor para quem está próximo de mim e para quem está precisando”.

A vivência periférica é um elemento decisivo nessa equação, porque a pressão econômica é ainda maior. O jovem conta que muitas vezes foi obrigado a sair para eventos com o dinheiro só da condução e outras tantas teve que pedir carona.

Ele só passou a ganhar alguma renda com shows e apresentações há menos de 1 ano e de forma esporádica, sem um fluxo certo de entrada de grana. Os pais ainda enxergam com desconfiança a sua profissão, mas a disciplina e energia do filho os levaram à respeitar sua escolha. “O trabalhador que acorda cedo pra ir buscar a sua parada e é assalariado, vai com uma certeza [de renda]. A gente só vai com o que a gente gosta, só quer fazer”, e completa: “a gente só quer mostrar que é possível”.

“Se eu falasse assim: mano, eu quero fazer faculdade de engenharia. 100% da minha família ia me apoiar. Essa cidade impõe que para você ser super bem sucedido tem que ter formação acadêmica. Eu quero um outro caminho, não quero só ter que me formar, quero mostrar que o que eu faço também pode ser considerado como um trampo”, reclama.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Em sua visão, o dançarino de periferia está cercado de um preconceito enraizado na sociedade, tanto nos centros quanto nas margens das cidades. Essa discriminação se expressa de diversas formas, através das questões financeiras, da forma pejorativa como a arte é denotada, como a dança é associada ao feminino pelo machismo ou mesmo por ser morador de periferia.

“Grande parte das coisas que vem para nós, que somos de periferia, é sempre derrubando. A desmotivação é algo que vem pesado e frequente, o lance de você olhar para si mesmo e de certa forma não se aceitar. Só de você ser da periferia já tem um rótulo, o que pensam daqui? Tráfico, morte, roubo, criminalidade, etc. Você vem com essa carga para o seu corpo”, explica.

Ser um dançarino periférico também o obriga a criar estratégias de cuidado com o corpo. As extensas e demoradas viagens que precisa fazer para os eventos no centro da cidade ou a longa duração dos que acontecem na quebrada, o leva planejar com antecedência a alimentação.

Marmitas é a principal fórmula que encontrou para comer bem mesmo nessas situações, no entanto nem sempre é possível ter uma dieta completamente saudável, e a principal barreira para isso novamente é a econômica.

“Você que é dançarino de periferia e mora com os seus pais, come o que tem, porque depende deles para te sustentar. Muitos não tem grana, você não é assalariado o tempo todo pra ter uma alimentação controlada. Eu sei exatamente o que eu tenho que fazer pra estar bem com a minha saúde, só que muitas vezes não tenho grana”, esclarece o bailarino.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

A preocupação com o corpo partiu de um novo momento na carreira do jovem, que agora está praticando aulas de breaking, estilo que exige mais força física do que as funk styles. Foi na piração do seu orientador Vinicius Silva que ele passou a inserir no treino além dos passos, exercícios laborais, como flexões e abdominais.

Essa experiência não é a única com outras danças urbanas, Leandro já fez aulas de waacking, hip hop dance e house dance e também já se arriscou em batalhas, principalmente de all styles, popping e locking, das quais já saiu vencedor em três oportunidades.

Mesmo com essa bagagem, o bailarino ainda se considera no início, mas dá dicas para quem, assim como ele, está começando: “Seja uma pessoa que saiba onde você pisa, saiba chegar e sair. Independente de todas as situações, nunca esqueça de onde veio, até porque isso é o que vai te definir. Sinta amor pelo que você faz, isso vai mudar totalmente a forma como você vê as coisas”.

Ensaio

O ensaio foi realizado no local em que Leandro começou a dar seus primeiros passos na dança, a rua de sua casa, no Jardim Flor de Maio.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa

--

--