Pâmela Amy: “morar na favela é um privilégio”

Movimentos da bailarina de Taboão da Serra/SP projetam reencontro com raízes africanas

Laio Rocha
corpocasa
9 min readApr 23, 2019

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Foto: Laio Rocha / corpocasa

Pâmela ouviu um barulho diferente, um som leve, encantador. Virou para um lado, para outro, procurou com os ouvidos a origem da música. Ao lado da tia, Carla, não exitou e perguntou: “você está ouvindo?”. A tia acenou que sim. As duas não pensaram duas vezes, foram em seu rastro.

Caminharam um pouco e chegaram a um teatro. Encantadas com aquela música, entraram no prédio e deram de cara com uma cena que, quase 10 anos depois, não saiu de suas memórias, um momento definitivo em que com 15 anos a jovem decidiu se tornar dançarina.

“O corpo dela visualmente era muito parecido com minhas raízes, os traços, a pele preta, a expressão que trouxe é muito verdadeira. Ela estava de turbante, de saia, carregando uma bacia com água na cabeça. Eu nunca fiz isso na vida, nunca precisei carregar uma bacia de água na cabeça, mas era muito próximo da minha realidade. Aquele momento pra mim foi: não sei o que estou sentido, mas é isso que eu quero fazer”, rememora.

A cena foi interpretada pela atriz e palhaça, Priscila Muniz, e o espetáculo era o Volúpia, do Núcleo de Dança Pélagos. Essa foi a primeira vez que Pam viu a companhia em que mais tarde iniciaria a sua carreira e pesquisa de corpo, desenvolveria os seus movimentos e dançaria por 5 anos.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Hoje com 24 anos, a dançarina do grupo Gumboot Dance Brasil, que viveu toda sua vida entre a cidade metropolitana de São Paulo, Taboão da Serra, e o bairro no extremo sul da capital, Campo Limpo, tem na procura incansável das suas raízes africanas a direção dos seus estudos, o fundamento das suas aulas e a fonte do seu sustento.

Os seus primeiros passos, no entanto, foram com apenas 5 anos. A mãe, amante da dança e das artes e exímia pé de valsa nos bailes de samba rock, ensinou o estilo para a filha ainda pequena, que causou impressão na família ao aprender o ritmo tão novinha.

Ali a jovem já demonstrava o gosto pela dança, quase como um instinto de sua ancestralidade. Neste momento, seus principais ídolos eram do grupo de axé Filhos do Sol, que ela conhecia de cor todas as coreografias e sonhava dançar junto nas praias de Salvador.

Apesar disso, não foi em aulas de dança, mas sim nas artes marciais do Karatê que ela passou a maior parte da sua infância e adolescência. Foram 7 anos treinando com afinco, esforço que lhe levaram à faixa roxa e trouxe um senso de disciplina muito rígido.

Foi somente este senso que segurou a sua raiva quando seus colegas de escola a insultavam. A menina sofreu bullying e racismo durante muitos anos, principalmente em função do seu estilo, associado ao orgulho de sua cor.

A família de Pâmela sempre foi alvo do racismo. Ela conta que foram uma das primeiras da quebrada a assumir o cabelo crespo e as origens africanas. À época, a avó tinha um salão em que alisava o cabelo das mulheres, ao assumir o crespo, passou a fazer o processo contrário e a trançar.

“A gente sentava na calçada em uma noite gostosa, tomava coca cola, então passavam uns moleques de bicicleta e jogavam ovos. Entrar em um shopping era um evento. A gente era alvo de várias paradas, com o tempo isso foi mudando”, relembra. “Nunca agredi ninguém, mas dava uma raiva. Na escola tinham aqueles moleques que enchem o saco cara, pega pesado”.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Foi o tio, Erivelton, que conseguiu dar possibilidades e caminhos para a menina, que não queria mais ir à escola. Isso começou de um jeito despretensioso, com uma pergunta: “você sabe o que é argumento?”. A resposta negativa fez o tio obrigá-la a procurar o significado no dicionário, o que a levou a uma biblioteca e consequentemente a um universo todo novo de imaginação e fascínio.

“Ele me fez escolher um livro que eu gostasse e, ao final da leitura, tinha que mostrar um resumo. Eu escrevia, mas não podia nem ler, nem entregar, tinha que explicar. Ele me falou: ‘quando alguém te zuar na escola, seja inteligente, argumente, as pessoas não vão entender, elas não sabem o que estão falando, nem porque estão te zuando’. Eu cresci com isso na cabeça”, descreve a dançarina.

A leitura a fez encontrar um lugar em que poderia viajar e se desconectar da realidade. Neste mundo de fantasia, ela passou a amar duendes, fadas, bruxas, estrelas, auroras boreais e tudo que há de fantástico.

“Não tinha nada a ver com o conceito de ser preta e periférica, acho que meu tio pensou assim: ‘deixa ela fugir um pouco disso mesmo, não está fugindo fazendo qualquer coisa, está fazendo o que gosta’ e permitiu”, explica.

Por outro lado, a realidade era pujante demais para que ela se alienasse completamente. A leitura trouxe ainda mais informação para uma jovem periférica, que desde cedo compreendia as questões da sua existência e do local em que vivia. O sentimento que nasceu disso foi de radicalização das suas posições políticas, resultado da revolta que sentia.

“Eu era radical na questão racial, por exemplo. Era assim: se você é branco, nem troca ideia comigo. Eu estava errada? Não! Fui criada por 7 mulheres pretas dentro de um quintal, eu sei o que é a solidão das mulheres pretas, vivo isso atualmente. Eu estava errada de ser radical? Não posso falar que eu estava errada, porque cada um tem sua luta, mas essa não é uma luta que funciona para mim, eu ia deixar de conhecer pessoas e lugares incríveis, ia deixar de aprender muita coisa”

Foto: Laio Rocha / corpocasa

“Ser da periferia é entender direitos que não têm porque é daqui. Morar na favela é um privilégio, porque quando você não tem, usa a sua imaginação para fazer acontecer”, afirma a bailarina. “Vai ter um evento, como o Graffiti Contra a Enchente ou a Felizs, então vou de chinelo porque eu estou na quebrada. O cacete! Eu vou com a minha melhor roupa, porque eu to na minha quebrada”.

Essas experiências são colocadas à mesa na dança e na movimentação desta bailarina, que encontrou em um mestre muitas chaves e caminhos para onde seguir. A primeira vez que Pâmela se lembra de ter visto o dançarino Rubens Oliveira foi no salão da sua avó, em que a tia trançava o cabelo do amigo.

Mas foi o segundo encontro que marcaria a sua vida. Lembram da cena descrita no início do texto? Então, após ver a cena em que decidiu tornar-se dançarina, advinha com quem ela deu de cara? Rubens estava saindo do teatro quando os dois se encontraram.

“O que você está fazendo aqui?”, perguntou Pamela ao amigo da tia. “Sou dançarino, eu montei esse espetáculo”, revelou. Ela ficou impactada, não sabia como reagir. O coreógrafo a convidou a visitar o local em que dava as aulas de dança, a ONG Projeto Arrastão, que também fica no bairro de Campo Limpo.

Nesta época ela havia iniciado a sua primeira formação em dança, com a companhia Afro Koteban, além de praticar diversos instrumentos, como clarinete, violino, trombone de vara e se arriscar no coral.

Também estimulada pelo tio, entrou na ONG, mas não nas aulas de dança, começou pelos estudos em comunicação e empreendedorismo. Apenas um ano depois ela descobriu o andar de cima da organização, em que o Núcleo de Dança Pélagos, de Rubens, realizava os seus ensaios.

“Mãe, quero sair da comunicação e fazer dança”. A mãe negou na hora. Foi uma luta até a menina convencer a matriarca, que ainda impôs uma série de regras, como manter as aulas dos instrumentos.

Foi ainda pior quando ela, durante um dos ensaios do Pélagos, se jogou tão intensamente nas aulas de Frevo, que deixou os dedos dos pés em carne viva, sem condições de colocar sapatos para voltar para casa. Quando a mãe viu a situação, não deu outra, proibiu novamente.

Foram cinco anos na companhia, quase interrompidos no meio, quando Pam completou 18 anos. Pressionada em casa, precisava começar a gerar renda e ajudar nas contas familiares. A dança, que ainda não virava grana, precisaria ser deixada para trás.

“‘Rubens, eu acredito muito nisso, é também um sonho meu, dançar e estar aqui, porém por questão de grana vou sair, não tenho dinheiro e minha mãe está cobrando”, troquei essa ideia com ele”, rememora. “Ele falou: ‘Eu sabia que você ia falar isso, mas tenho outra proposta. Fica no Pélagos, a gente precisa de você aqui, em contrapartida você entra no Gumboot”.

Desde então passaram-se 7 anos que a bailarina integra o Gumboot Dance Brasil, grupo que rememora e celebra a dança sul-africana de mesmo nome, que nasceu da linguagem criada por pessoas escravizadas nas minas de ouro. Através dos barulho das batidas em suas botas e capacetes, eles conseguiram se comunicar, organizar e superar a barreira da língua.

Neste período, os colonos ingleses colocavam pessoas escravizadas de diferentes etnias para trabalharem nas minas, de forma que impedidos de se comunicar, não pudessem se defender. O gumboot foi o meio que encontraram para se fortalecerem perante os colonizadores.

“Estar no Gumboot é se reconhecer, olhar para dentro, para onde eu não quero, para a minha ferida. É o meu lugar de protesto, onde as pessoas me aceitam, me reconhecem e me dão um espaço para falar”, comenta. “Na época do Pélagos, meu sonho era estar no Gumboot. Esse sonho eu realizei e estou realizando! O Gumboot está me ajudando a realizar vários outros sonhos que eu nem pensava que seria possível”.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Entre esses sonhos, está o de viajar pelo Brasil dançando, objetivo que está muito próximo de se concretizar. O grupo foi contemplado em edital que os leva para apresentações em diversos estados. “É mostrar que a arte é possível. Percebi no Gumboot que sou assim e é possível ganhar dinheiro dessa forma, é possível me sentir bem e sobreviver”, afirma a bailarina.

Além dos sonhos, o grupo também trouxe surpresas que jovem jamais imaginaria no início da carreira. Durante um projeto de oficinas de gumboot em diversas periferias de São Paulo, sua mãe participou sem que ela soubesse. Ao final, todos os grupos que passaram pela formação se apresentaram em conjunto, no chamado Gumbootzão. Nessa apresentação, a mãe fez um solo diante da filha, que fazia a percussão e produção do espetáculo. Em êxtase, a única reação que teve foi de choro e gargalhadas.

Atualmente, Pâmela também trabalha com aulas de dança africana para adultos, fruto da intensa procura por suas raízes durante tantos anos na companhia e orientação do mestre Rubens, que indica cursos, oficinas, workshops, leituras e novos ritmos para os seus dançarinos.

“Eu gosto de conhecer o pessoal que é da África e vem dar aulas aqui, os mestres do coco, jongo, maracatu. Estou no Gumboot mas sempre me alimentando nesses lugares, porque só ele não é o suficiente para o meu corpo. Eu vou destrinchando outras regiões da África que compõe o Gumboot, como o Zulu, o Botswana. O Rubens me apresenta, dá vários caminhos”, relata.

Estar no lugar de professora trouxe muitos aprendizados, entre eles um que está na ponta de sua língua: “degustar o tempo”. As frustrações no início do projeto, a ansiedade com os resultados e a insegurança com as dificuldades são elementos que amadureceram a sua experiência e fortaleceram essa nova etapa da sua carreira.

É neste novo desafio que a jovem coloca as suas energias e procura sintetizar para outras pessoas o conhecimento que durante toda a sua vida investigou quase como um instinto. “É acreditar em sua própria verdade e fazer, não dá para teorizar muito, porque só assim você entende o que quer para a sua vida, fazendo”, finaliza.

Ensaio

O ensaio foi realizado no bairro do Leme, na cidade metropolitana de São Paulo, Taboão da Serra. É neste pico que rola há 4 anos o Graffiti Contra a Enchente, evento realizado pelo coletivo Raxakuka que denuncia o descaso do poder público com o local, alvo de enchentes há muitos anos. Desde o início do projeto, a bailarina prestigia e se apresenta no rolê com o Gumboot.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
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