Sarah Assunção: “Precisamos discutir sobre o negro na dança”

História do negro é norte da pesquisa da dançarina da zona leste

Laio Rocha
corpocasa
8 min readJul 12, 2019

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Foto: Laio Rocha / corpocasa

com pé, segurando as mãos do avô, a menina de apenas 6 anos, Sarah Assunção, conheceu a dança cedo, com um passo pra lá, outro pra cá, ao som do samba rock dos bailes de salão. 13 anos depois, aos 19, o movimento do corpo virou político e a dança um canal para entender origem, ancestralidade, identidade e, principalmente, ativismo.

A investigação sobre a movimentação do negro está ligada à formação intelectual da dançarina, que através da literatura afro brasileira e africana passou a estudar a história negra no mundo, a sua relação com a dança e, nesse sentido, como os corpos negros estão presentes neste cenário.

De pan africanismo à colorismo e relacionamento afro centrado, falar sobre dança com Sarah necessariamente envolve dialogar sobre os principais temas debatidos pelo movimento negro, relação simbiótica no discurso da jovem. Esse processo está intrínseco à sua própria vivência enquanto mulher negra periférica.

O início da sua trajetória, assim como de muitas meninas, foi no ballet. De origem européia e adaptada aos corpos brancos, foi nesse estilo que ela começou a enxergar as relações raciais na movimentação, sob um ponto de partida relacionado à representatividade.

“O ballet não é cultural nosso, ele é eurocêntrico, então é outra visão, são aqueles brancos super pálidos. O corpo é diferente do nosso, a bailarina não pode ter bunda, peito e coxa. Eu sou uma mulher negra, tenho bunda, peito e coxa, então é uma ruptura disso”, aponta Sarah.

“Tive uma mulher negra como professora, que tinha peito, bunda e coxa, era super retinta e participava de uma companhia de dança há muito tempo, dançou fora do país, estudou na França. Era uma super representatividade para mim, que na época, quando criança, nem pensava nisso”, conta.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

A representatividade do negro no ballet é uma questão que mobiliza uma série de polêmicas e, em todo o mundo, é alvo de críticas. No Brasil, são poucas as iniciativas que desenvolvem algum tipo de inclusão e, merece destaque, a direção de Ismael Ivo no Ballet da Cidade de São Paulo, primeiro afrodescendente neste cargo, que, no entanto, destaca o número baixo no corpo de dançarinos da companhia.

Por outro lado, há mulheres negras que transpassaram a barreira do racismo estrutural e conseguiram alçar voos altos neste universo, entre elas a brasileira Ingrid Silva, formada no projeto ‘Dançando para não dançar’, da comunidade da Vila Olímpica da Mangueira, no Rio de Janeiro, que chegou ao status de primeira bailarina do Dance Theater of Harlem.

Para Sarah Assunção, o despertar dessa consciência surgiu quando, aos 15 anos, decidiu entrar no curso de dança da ETEC das Artes, na zona norte. Até então, os espaços em que apreendeu as suas movimentações, no ballet, no jazz e no contemporâneo, eram majoritariamente brancos e, as discussões sobre negros, esbarravam na falta de interesse dos pares.

“Na hora em que entrei e vi metade da ETEC preta, pensei, nossa, estou em um lugar onde tem bastante gente da minha etnia, professores negros, que no ensino médio e ensino particular não teve, e pra mim era normal. Quando entrei na ETEC eu vi isso, vi que não é normal não ter pessoas pretas se somos metade da população. Aí começou a despertar outro estudo, o estudo do negro, do porquê ele não está nos lugares”, lembra a bailarina.

A palavra que passou a guiar a sua postura a partir de então foi “problematizar”, termo que, em todos os momentos, está presente em sua fala. A trincheira em que essa resignificação da realidade primeiro se instalou, de forma muito instintiva, foi a própria casa, onde a família começou a receber um fluxo de informações que mudou completamente as relações.

O avô, com quem deu seus primeiros passos na dança, foi responsável por embates marcantes em sua vida. De uma geração ensinada sob frases como “coisa de preto” ou “negro bandido”, foi um processo lento e de bastante diálogo e desconstrução fazê-lo enxergar de outras perspectivas o negro na sociedade.

“Cheguei falando: Vô, não pode abaixar a cabeça para branco não. Ele: ‘não, como assim, você pode ser presa, podem te bater’. Eu falei: ‘Não!’. Mostrei para ele que Abdias do Nascimento já falava isso, mulheres como Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo, falei que tem muita gente falando como o negro se posiciona há muito tempo. Ele nem sabia disso”, rememora a bailarina.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Com o pai, de uma geração mais próxima e mais instruída, a conversa fluiu em outro sentido, a partir de uma solidariedade comum às práticas de estudo e empreendedorismo negro. Engenheiro formado nos anos 1970, o sonho do patriarca sempre foi levar a filha para o mesmo caminho, no entanto o tempo o levou a aceitar sua escolha e, posteriormente, apoiá-la em sua trajetória.

A mudança mais profunda que Sarah trouxe para o lar veio neste sentido, através de uma provocação voltada para o fortalecimento da comunidade negra. “Trago uma ideia na minha casa sobre o quilombismo, que é uma estrutura do quilombo dos palmares, que é: comprar de preto, vender para pretos, conviver com pessoas pretas”, explica.

A maior expressão da investigação da dançarina veio na dissertação Corpo de Delito, trabalho de conclusão de curso criado para a ETEC, em que, em parceria com Guilherme Rosa, desenvolveu uma pesquisa sobre a representação do negro nas danças urbanas.

A relação com o companheiro de estudo, em si, foi uma experiência que trouxe novos questionamentos, relacionadas ao chamado ‘colorismo’, debate ligado ao ser negro e como o fenótipo e genótipo estão ligados a essa aceitação e identidade da pessoa.

Sarah conta que, em mais de um momento, se deparou com companheiros que se definiam como “morenos” e “pardos”, duas nomenclaturas que não definem uma raça, mas sim tipologias usadas no Brasil para determinadas colorações que, em essência, pertencem à raça negra, mas que historicamente não são identificadas dessa forma.

O próximo passo em sua trajetória foi a entrada na universidade, Anhembi Morumbi, em que as problemáticas de ser uma mulher negra tornaram-se ainda mais acentuadas. Ocupada majoritariamente por uma elite branca com condições de pagar um curso de dança, o local se deparou com uma mulher forte que não exita em problematizar as aulas, o currículo e a própria instituição.

A primeira treta veio do currículo, que não contempla danças brasileiras, apenas ballet, contemporâneo e moderno. A segunda veio dos autores, todos de origem européia e brancos, que não refletem sobre o corpo negro nas danças. E, por fim, das próprias aulas, em que os professores, de mesmo aspecto, quando questionados sobre a aplicação de estudos sobre pretos, desconversam, ignoram ou mesmo sentem-se ofendidos.

“Eles só me entregam autores brancos. Não me sinto representada com Freud, por exemplo, acho ele um ser incrível, mas nunca falaram de Frantz Fanon, entende? Na dança, apenas brancos como Laban, Klauss Vianna e Mary Wigman. Não são negros, trazem outra perspectiva, não entendem que o corpo do negro é diferente. É uma problemática que martelo”, reclama Sarah.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Contraditoriamente, apesar de ter acesso à universidade, a um conjunto de professores e a conteúdos de elite, a pesquisa da dançarina não evolui neste espaço, ao contrário, tornou-se mais difícil em função das demandas de estudo do curso.

Essas barreiras, entretanto, não conseguem parar as linhas de investigação voltada para as danças africanas, como o afrobeat, de países como Guiné, Angola e Moçambique, além daquelas de origem afro, como o Dancehall, oriunda da Jamaica.

Sua pesquisa passou a extrapolar os limites da dança e se encontrar em outras linguagens, na fotografia, audiovisual e publicidade, com a criação da Ubuntux, marca que reflete a filosofia ubuntu, baseada na máxima: eu sou porque nós somos.

Coletivo formado por 10 pessoas de diversos segmentos artísticos e culturais, o primeiro projeto produzido foi o ‘Se Enxergue’, que estimulava a auto estima de mulheres negras.

“A Ubuntux veio para problematizar, mostrar que estamos presentes e vamos ocupar vários espaços. Chegaram mulheres pretas para mim e falaram que nunca tinham me encontrado como mulher preta. Eu falo: seu nariz é bonito, sua boca é bonita, sua cor é bonita”, comenta.

Fomentar esse empoderamento sempre foi uma marca da jovem, que ainda na adolescência passou pelo processo de transição capilar após conhecer o ‘Beleza Natural’, projeto da empresária Zica Assis que trabalha a auto estima capilar de mulheres crespas e cacheadas desde 1993.

A transformação foi o impulso para, em pouco tempo, virar referência para as mulheres da sua comunidade. Das tranças azuis às rosas, o black power, os brincões, as roupas chamativas, onde quer que chegue Sarah chama a atenção de todos e, por isso mesmo, passou a influenciar suas colegas.

“Independente da cor, se estou com ou sem cabelo, sou bonita dessa forma. Comecei a ir para escola, e podiam rir, fazer o que for, mas a minha auto estima estava tão boa, que não estava ligando. Aí muitas meninas pretas começaram a fazer isso também”, relembra.

“Todos os lugares onde chego, sou a presença, pode ser positiva ou negativa para você, mas eu estou ali para você sentir que eu estou ali”, reflete Sarah. “Eu venho para quebrar o padrão e não estou nem aí. Sei que, por um lado, vou sofrer algumas coisas, que é inevitável, ser negro no Brasil é isso, mas abaixar a cabeça nunca. Vale a pena, tanto para mim, quanto para as futuras gerações, tenho isso em mente. A revolução não é no dia de amanhã, é sempre hoje, tudo que eu puder fazer para evoluir hoje, eu vou fazer”, pontua.

Ensaio

O ensaio foi realizado na Passarela dos Piques, no centro de São Paulo, local pelo qual Sarah Assunção passa em seu destino sentido EducAfro, local em que estuda e fortalece sua identidade negra.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
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