Vanessa Rosa: “entendi que é mais importante contar nossas histórias”

Palhaça do Grajaú busca em figuras cômicas indígenas e afrobrasileiras novos caminhos para o humor

Laio Rocha
corpocasa
9 min readSep 8, 2019

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Foto: Laio Rocha / corpocasa

A história da palhaça e arte educadora Vanessa Rosa começa muito antes dela nascer. O seu encontro com a arte veio de longe, de Pernambuco e da Bahia, quando seu pai, Nelson, e sua mãe, Marcelina, saíram aos 17 anos de suas terras natais para procurar uma vida melhor na cidade grande.

Sem conhecer nada nem ninguém na metrópole, eles encararam São Paulo de peito aberto, apenas com a intuição guiando seus caminhos. A mãe conseguiu um trabalho de dama de companhia de uma senhora rica, já o pai usou o ofício de artesão para ganhar a vida.

Suas trajetórias se cruzaram, constituíram família e, assim como a maior parte das famílias de migrantes nordestinos, foram para a periferia, mais exatamente o Grajaú, no extremo sul da capital.

A vida urbana escondeu sob as mercadorias os saberes tradicionais, relegando-os à alcunha de excentricidades ou semelhantes. A arte e pesquisa da palhaça vem justamente deste lugar: do resgate e reconhecimento dos conhecimentos ancestrais que seus pais carregam.

“Antes de eu falar que fui fazer arte em algum lugar, acho que eu sempre tive isso em casa”.

Foto: Laio Rocha / corpocasa

O bairro do Grajaú é o mais populoso da cidade de São Paulo com cerca de 370 mil habitantes. A região começou a tomar forma por volta da década de 1970, quando a migração em massa de nortistas e nordestinos inundou a capital paulista, em especial o distrito de Santo Amaro, em que foi criado um polo industrial.

Área de manancial da Represa Billings, o Grajaú recebe a pecha de pior bairro para se morar em São Paulo, devido à uma série de indicadores negativos avaliados pela Rede Nossa São Paulo, entre eles, o número de livros, mensurado em apenas 0,01 por habitante.

Além disso, a questão ambiental é um grave problema. De acordo com dados da Prefeitura, dos seus 102.946 domicílios, 28.308 não estão ligados à rede de esgoto e, em sua maioria, são despejados diretamente nas águas, levando à contaminação dos mananciais e impactando diretamente a saúde da comunidade.

Mesmo sob adversidades, neste cenário florescem uma série de movimentos artísticos e sociais com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e interação da população com o seu bairro, sua história e seus conhecimentos ancestrais. Desde coletivos que atuam na preservação e intervenção nas margens do rio, até aqueles que se expressam através dos elementos da cultura hip hop, graffiti, rap, sarau, dança e ritmo.

Vanessa emergiu dessa cena efervescente nas periferias de São Paulo e teve a oportunidade de se conectar com uma nova e desconhecida cultura das periferias: os povos indígenas Guarani M’bya que moram nas regiões de Parelheiros e Jaraguá.

“O que é educação?”

Ao iniciar a sua licenciatura em Arte e Teatro na UNESP, a palhaça fez um estágio no CECI, o Centro de Educação e Cultura Indígena Tenondé Porã experiência que mudou completamente a maneira como enxerga educação e que a levou a questionar toda a sua formação em palhaçaria.

O primeiro ponto, bastante simples, foi perceber como a cultura indígena não é nada daquilo que nos foi ensinado nas escolas. Ao conhecer uma comunidade indígena urbana, que se vê obrigada a se conectar com a sociedade eurocêntrica, mas mantêm as suas tradições e ancestralidade, ela compreendeu que haviam muitas histórias que não lhe foram contadas.

São Paulo ocupa o 4º lugar no ranking de cidades com maiores populações indígenas do Brasil, com 12.977, enquanto no estado são 41.794, das etnias Guarani Mbya, Tupi Guarani, Kaingang, Terena, Krenak, Fulni-ô e Atikum.

“Eu comecei a me ligar um pouco desse contexto histórico, de muitas coisas que não me contavam, até em relação a minha família mesmo, coisas que na escola nunca me ensinaram”, conta.

“Mais do que eu chegar lá com esse princípio colonizar de conhecer este povo, conforme eu fui indo e de fato me permitindo, entendi que eles estavam me possibilitando me perguntar quem sou eu”, reflete.

Deste processo surgiu uma intensa redescoberta da sua expressão artística e a abertura de um novo e amplo caminho de pesquisa. O personagem que iluminou essa jornada foi o Hotxuá, figura cômica dos povos Krahôs, do norte do Tocantins, que tem a função de manter o riso, a harmonia e o equilíbrio de toda a aldeia.

“Quando eu comecei a estudar palhaçaria, não parei mais, alguma coisa me pegou”

Ao conhecer o Hotxuá, todo o seu estudo sobre palhaçaria, vinculado ao universo eurocêntrico, entrou em choque como uma concepção nova daquilo que ela mais ama. Percebeu que a bagagem que vinha carregando até ali não representava as suas vivências, a sua história e, até mesmo, sua pele.

“Nesse processo de reconhecer outras figuras cômicas, eu comecei a me perguntar de onde nasce essa palhaçaria, quais são as suas raízes no Brasil”, diz Vanessa. “É nesse contexto que veio o processo de entender quem eu sou e como eu movo a comicidade no meu corpo. Essas referências são as que de fato falam sobre mim”.

Esse momento foi um ponto de virada na sua carreira, porque trouxe uma nova aspiração para seu trabalho e gerou uma análise profunda das vivências que moldavam a sua arte. Ela compreendeu que a palhaçaria que aprendeu e desenvolveu não representava seu corpo e a mensagem que queria passar.

“Fiz um curso específico de palhaço para hospital. Lembro que eu entrei dentro desse modelo, narizinho, cara pintada, fofinha. Quando eu entrei e a enfermeira olhou pra mim, falou assim: nossa, a sua cor, você é diferente. Olhei para ela, em volta. Eu já tinha isso, mas na hora que você está ali, aparece mais. Ela me trouxe para a realidade, do tipo: os palhaços que entram nesses hospitais são todos brancos”.

“Quantas mulheres negras tem fazendo palhaço dentro de hospital ou em outros lugares? Quantas mulheres negras fazem palhaço? Aí eu falei, caraca, ela nunca tinha visto uma palhaça negra”, relembra.

A trajetória na cena da palhaçaria está repleta de situações em que gênero, classe e raça se impõem como uma barreira para o seu avanço. Quando se vê os grandes expoentes da área, por exemplo, são homens, brancos, que tiveram a oportunidade de aprender diretamente na Europa.

Entrar em conflito com essa linha de trabalho majoritária sendo uma mulher negra e periférica trouxe um olhar mais atento ao racismo estrutural para Vanessa. Enxergar as pequenas violências diárias que seu corpo sofre foi difícil, mas encará-lo de frente foi como um chamado.

“Ela [enfermeira] me provocou nesse lugar: não tem como você disfarçar, é nítido, por mais que você pinte a sua cara, bote um nariz vermelho, se enquadre do mesmo jeito, você não vai deixar de ser quem você é”, pontua.

“Você pensa na figura do palhaço, desde o Patati Patata até quem está nos circos ou mesmo em hospitais, eles estão representando o que?

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Quando começou a dar aula de palhaço, a pesquisadora pegou o desafio de lecionar no Grajaú. A responsabilidade veio com uma provocação: que tipo de palhaçaria ela vai passar para essas pessoas? O que isso vai significar para elas?

Vanessa reflete que o palhaço está associado a um personagem deslocado da sociedade, alguém que sempre vai tentar em vão, e por isso mesmo, é motivo de riso. No entanto, o que são as pessoas da periferia? Não são também pessoas que são excluídas de diversas formas dos espaços?

“A gente não se encaixa dentro da periferia ao que é tido como essa sociedade branca, hegemônica e patriarcal. O que eu estou querendo dizer para essas pessoas se elas entram em cena e eu falo: volta (sai de cena). Volta por quê? Não, fica, deixa eu te ver, quem é você?

“Comecei a entender que pra mim é muito mais importante contar nossas histórias sendo palhaças e palhaços”.

Foi em busca de representatividade que a pesquisadora mergulhou nas festas populares brasileiras em busca de figuras cômicas indígenas e afrobrasileiras. O Hotxuá foi a primeira dela, a partir da oportunidade de conhecer a Festa da Batata dos indígenas Krahôs, em Tocantins.

E começou a unir alguns outros conhecimentos, como por exemplo, o aprendizado sobre as figuras do Cavalo Marinho, manifestação cultural da Zona da Mata de Pernambuco que acontece entre o início de ciclo natalino e a Festa de Reis. A brincadeira une música, poesia, teatro, ritual e canto. Os protagonistas são o líder, Capitão Marinho, os trabalhadores Bastião e Mateus, e sua companheira, Catirina. O brinquedo tem mais de 70 personagens no total.

“Você consegue entender que riso é esse que essas pessoas estão provocando? Será que é um riso que me faz lembrar quem eu sou? Dentro do meu trabalho eu também quero que as pessoas tenham um respiro, mas eu não quero que elas se esqueçam. Vou lembrar de uma fala de um educador e historiador indígena, Casé Angatu, que é: não tenho raiva, eu tenho memória. Essas figuras cômicas, fazendo uma analogia com essa frase, trazem memória”, conclui.

A investigação tomou corpo através do Terreiros do Riso, nome que se dá a sua pesquisa contemplando várias áreas, como teatro, dança, palhaçaria e música, que procura exatamente aprender sobre o riso através dos saberes das culturas populares brasileiras, saberes indígenas e ancestralidade.

O projeto Laroyê Mojubá: O Riso Pede Passagem desenvolvido conjunto a outrxs parceirxs e contemplado pelo ProAc Culturas Negras está rodando por uma série de centros culturais, bairros e teatros. “Terreiros do Riso é uma resistência dentro do contexto da comicidade no Brasil. Trazer esse olhar de: que riso é esse que não vai rir da gente, mas que vai estar no contexto de produção de conhecimento sobre nós”.

“Ser mulher negra, periférica, pesquisadora e construir um lugar outro dentro da palhaçaria, que é algo muito solidificado, é difícil, porque sou inferiorizada o tempo inteiro”

Foto: Laio Rocha / corpocasa

Resistir às dificuldades que o campo da arte impõe, para Vanessa, está ligado ao conhecimento de si mesmo e a conexão com suas raízes. Ela compara a uma árvore, que se possui raízes firmes e fortes, sobrevive a qualquer problema, enquanto aquelas mais frágeis caem facilmente.

O apoio de seus pais nessa trajetória foi fundamental. Mais que isso, eles são fonte de inspiração e de conhecimento para a artista, que bebe na fonte dos saberes ancestrais dos familiares. É também nisso que ela se agarra para enfrentar as fases mais complicadas.

“Como é que a gente vai gingar para produzir o nosso conhecimento? Para continuar e nos fortalecer sem trampo? É a ginga que eu estou aprendendo agora. Como é que eu não paro? Não sei, não é fácil, mas eu não posso esquecer da história da minha mãe e do meu pai”.

“Se você está conectado com a terra, não vai se perder de quem é”.

Ensaio

O ensaio da palhaça Vanessa Rosa foi realizado na divisa de Grajaú e Cidade Dutra, bairro em que ela vive durante toda a sua vida e onde iniciou na arte e educação.

Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa
Foto: Laio Rocha / corpocasa

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