Vitor Stravinsky: “represento todes LGBTs de periferia que não tem as oportunidades que eu tenho”
Dançarina de Itaquera, Zona Leste, Stravinsky mistura budismo com militância LGBT e preta
Quem consegue ficar parado ao ouvir “explosão tchakabum nova onda do verão”, “pra dançar isso aqui é bomba” ou “onda, onda, olha a onda”? A geração que viveu os anos 2000 tem no imaginário a maioria dos grandes hits do auge do Axé Music e do Pagode Baiano no Brasil.
Bandas como É o Tchan, Tchakabum, Babado Novo, Asa de Águia e Chiclete com Banana marcaram época e levaram o swing dos trios elétricos da Bahia para todo o país. Na COHAB, em Itaquera, o ritmo embalava os passos do jovem Vitor Hugo, que com apenas 7 anos se jogava no Axé sem dar espaço para vergonha alguma.
Ao lado dos quatro 4 irmãos, dois meninos e duas meninas, passava o dia brincando com a molecada dos prédios. Vez ou outra, os moleques encrencavam com o seu jeito e começavam a ofendê-lo. “Eu sempre dançava, sempre fui muito viada. Eu brincava no meio dos moleques, esconde esconde, pega pega, fazia tudo, mas se eles queriam fazer discriminação comigo, eu sentava a porrada”, conta.
Muito nova, foi nesta idade que Stravinsky se percebeu gay. Não houve uma situação ou algum acontecimento, veio de um insight, no qual entendeu que sua sexualidade é diferente das outras pessoas, como de seus irmãos, por exemplo. Essa percepção a tornou mais forte para enfrentar o preconceito.
“Desde novinho percebi, gostava de usar short mais agarrado, que valorizava o corpo. Nesse período eu já descobri que era viado. Aos 8 anos, os garotos ficaram mais homofóbicos, eles viam querer arrumar comigo, eu falava: vamo brigar. Nas escola do bairro, LGBTs que se descobrem cedo são obrigadas a se esconder. Eu falava, mano, não vou esconder”, relembra.
A escola onde estudou, Soka, que segue a filosofia budista, foi fundamental para a construção da personalidade forte e livre da dançarina. A instituição, presente em diversos países, segue os valores de cultura de paz, direitos humanos, diálogo, coexistência com a natureza, entre outras, ambiente que abraçou Vitor e desenvolveu o seu melhor no campo das artes.
A sua formação contou com o estudo de música e dança, em que conheceu instrumentos como flauta doce e estilos como ballet e danças regionais. Além disso, teve acesso a uma educação crítica e emancipadora, que deu ferramentas para que seu estilo e criatividade afloracem.
Foi através do budismo que o seu contato com a dança deixou de ser só uma brincadeira no prédio para tornar-se competição e treinamento. Nos campeonatos regionais entre as sedes budistas, além de disputar em apresentações, passou a coreografar grupos.
“Quando a gente participa do budismo, tem grupo de dança, canto, bastidor, é todo um rolê. Sempre tive muito convívio com dança, vi muitos vídeos e gostei de dançar. Me identifiquei com esse trabalho quando teve um campeonato de street dance, em que competiram todos os municípios de São Paulo, e tive a oportunidade de ser coreógrafo. Quando fiz isso, vi que queria trabalhar com dança”, explica Vitor.
“Você não nasce homem ou mulher, você se torna um homem ou uma mulher”
Stravinsky e os irmãos foram criados desde muito novos pelas tias. Seus pais não tinham condições de criá-los e deixaram a responsabilidade com os parentes que deram instrução e educaram como se fossem seus próprios filhos. Apesar de rígidas, deram liberdade para que cada um pudesse seguir seu caminho.
Muito apegada às tias, Vitor viu essa relação entrar em cheque aos 14 anos, quando revelou para os familiares a sua homossexualidade. Alvo de piada dos tios, sempre teve as tutoras como defensoras, mesmo diante de uma situação nova e desafiadora para elas.
O momento mais difícil foi quando seu pai, com uma faca na mão, a ameaçou e a questionou sobre sua orientação sexual:
— Você não tem mais que me chamar de pai.
— Então eu não sou mais seu filho?
— Eu não tenho filho viado.
— Então tá bom querida.
Deste dia em diante, ela jamais voltou a chamá-lo de “pai”, tem um tratamento restrito apenas por seu nome.
“Não tenho rancor dele, não tenho nada, mas eu acho que no mundo tem pessoas que a gente tem que começar a agir mais 8 ou 80: ou soma ou some, porque pra atrasar já tem muita gente, tem um governo, uma realidade muito grande que já está atrasando, forças maiores que nós, representantes “maiores que nós”, entre aspas. Se você ficar com alguém que só quer atrasar o seu lado, não dá”, afirma.
As dificuldades se sucederam e entender essas dinâmicas foi um processo doloroso, porém de enfrentamento constante. Diante do preconceito da família e da sociedade, ela encara de frente no dia a dia, resistindo e existindo, não escondendo sua forma de ser e seus gostos.
Outro aspecto de sua vivência são as questões que envolvem ser LGBT na periferia. É preciso ser estratégica e estar sempre atenta. “Enfrento com o meu melhor aspecto, mostrando quem sou, independente da roupa que estou. Se quero sair feminina, eu saio, se tiver que sair masculina, eu saio. Mas ser LGBT na quebrada tem momentos e momentos. Por exemplo, não tem como sair de shorts e maiô se está tendo alguma coisa no estádio em Itaquera, a gente sabe a realidade política desse país”, relata.
Há 4 anos, uma festa entraria em sua vida e mudaria totalmente a forma como ela entende a sua sexualidade e a sua negritude. Quando a Batekoo chegou em São Paulo, Stravinsky já tinha ouvido falar muito sobre a balada e estava ansiosa para conhecê-la.
Foi amor à primeira vista. Ao chegar no rolê, deu de cara com um rolê preto, cheio de pessoas lindas e estilosas, exatamente como ela. A conexão foi imediata. Destaque nas rodas de dança, passou a se aproximar dos produtores e, pouco depois, foi chamada para compor a Companhia Batekooniana, projeto da funkeira Renata Prado, que juntou 11 dançarinos LGBTs na cia oficial da Batekoo.
“A Batekoo é um role muito surrealista, tem toda uma aceitação de me reconhecer enquanto negro e no trabalho do não binarismo”, descreve Vitor. “Me identifico como não binário porque eu não adequo. Para mim, você não nasce homem ou mulher, você se torna um homem ou uma mulher, são questões de vivência e experiência. Acho que a gente tem que desconstruir muita coisa na biologia para parar de falar essas coisas: eu nasci homem, então vou ser sempre homem. Não. Pra mim você se torna”.
“A Batekoo deu essa representatividade pra gente, da gente amar a nossa estética, amar quem a gente é, com as nossas características, seja ela qual for, amar essa negritude”.
“Eu tenho essa missão”
O que significa ser uma dançarina na periferia? Há muitas respostas possíveis para essa questão, mas todas elas geralmente carregam uma responsabilidade grande, seja de ancestralidade, seja de luta, revelando mais do que o amor pela arte, um compromisso com determinado valor humano para a sua expressão artística.
Stravinsky tem compreensão de seu lugar, consciente de que é representação para muitos da sua quebrada. Esse entendimento se explicita em sua movimentação, estilo e resistência.
“A minha missão enquanto dançarino, trabalhando com essa arte ou sendo como sou, é dar novas possibilidades para essas bichas que muitas vezes não são ouvidas e passa por muita coisa. As pessoas dizem “não, é só uma bichinha preta”, desvalorizam, é a Lacraia. Para mim, é uma honra ter existido Lacraia, ser comparada com ela é mais honra ainda, porque ela deu voz para que eu existisse, para que muitas outras existissem, muitas outras bichas pretas”.
“A gente fazendo e colocando goela abaixo neles”
Hoje aos 24 anos, Vitor é formada em Educação Física e trabalha como professora de dança em uma academia, integra a Companhia Batekoo e também faz jobs como DJ em diversas festas.
Em sua trajetória já trabalhou em uma série de grandes eventos, como o Hop Pride, festival LGBT que acontece no Hop Hari, em Vinhedo, São Paulo. Também trabalhou como dançarina da cantora e drag queen, Aretuza Love, e em diversas baladas de SP dançando, tocando e animando as festas.
Apesar de ter seus estudos e movimentação voltada para as danças urbanas, como Vogue e Hip Hop, Stravinsky já passou por uma série de estilos, como jazz, funk, stiletto, twerk, danças brasileiras, entre outros, mas o lugar em que se sente mais à vontade é no street dance e no freestyle, em que tem mais liberdade para misturar passos de diferentes ritmos e mostrar algo novo e seu.
Atualmente focada nas aulas, o seu método de ensino passa por questões como empoderamento e aceitação do corpo, valores importados do budismo que aplica com suas alunas.
“O trampo com dança que faço é mais importante do que a técnica em si, é um trabalho de autoestima, para conhecer seu corpo e brincar com isso. Sempre faço elas se olharem, mostro que todo corpo é um corpo válido para dançar”, esclarece.
Ensaio
O ensaio foi realizado no Parque do Carmo, Zona Leste.