No caos, teria uma esperança?

Consagrado pelo público e pela mídia especializada, “The Last of Us” se destaca pela arte cinematográfica do storytelling em uma narrativa sem heróis nem vilões.

Rafael Costa
O Costaverso
11 min readMay 7, 2020

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É mais do que necessário começar esse texto confessando que jogos ao estilo horror survivor nunca me chamaram tanto a atenção; destaco, para jogar, mas não para assistir. Naquela velha era em que a gurizada se abarrotava nas locadoras, lá estava eu, na multidão, assistindo jogadores atravessando cenários assustadores de um dos capítulos de Resident Evil. Por mais que achasse aqueles cenários apocalípticos sensacionais, com seus corredores estreitos e carros estilhaçados em meio a ruas escuras, muita coisa me cansava só de olhar. Aquela animação de abrir as portas, por exemplo, era uma. Caramba! Um filmezinho só pra abrir uma porta? Sério mesmo? E as câmeras estáticas, cada uma em cada canto do ambiente. Nuss! Ainda bem que esse pensamento ficou no passado.

Entre algumas aventuras por vários títulos de horror (Fatal Frame, Silent Hill e até o próprio Resident Evil), com The Last of Us foi único que me despertou um interesse. Não apenas pelo aplauso por parte do público e crítica especializada, mas sim pela curiosa construção que o game indica ser. Estamos tão acostumados a ver um personagem sozinho na tela contra mundo e tudo, mas The Last of Us traz dois personagens em tela. Qual seria o objetivo desse detalhe? Por que? Só jogando pra saber…

Se não fosse por vídeos de gameplay e algumas imagens diversas do jogo, seria possível categorizar The Last of Us como mais uma corrente de Resident Evil. Porém, a partir do momento que o jogar passa a tela-título, a imersão é iniciada nos primeiros segundos e nesse ponto que familiaridade toma conta.
The Last of Us inicia a trajetória na noite do aniversário de Joel, o protagonista do game, quando a infecção de um fungo chamado Cordyceps* passa a infectar humanos. O caos está instaurado na cidade enquanto Joel, Sarah e o Tommy (irmão de Joel) tentam sair da cidade. Durante a correria, Tommy acaba ficando pra trás, enquanto Joel carrega a filha nos braços para o mais longe possível. No caminho, eles são interceptados por um soldado militar que os salva da perseguição de alguns infectados. Por um momento, Joel respira aliviado, mas o oficial recebe ordem de executá-los também. No rádio, o soldado comunica ao superior da presença de Sarah (“Senhor, tem uma criança!”), mas as ordens de execução são expressas e e ele abre fogo contra os dois. Joel joga a filha tentando salvá-la, se desequilibra e cai no chão. O militar chega perto para executá-lo, mas Tommy aparece na hora e mata o oficial. Parecia que estava tudo bem, mas o desespero toma conta de Joel quando percebe que Sarah foi alvejada pelo tiro do soldado.

Sarah morre nos braços de Joel no início do game (Imagem: The Enemy)

O game tem seu prosseguimento 20 anos depois. O surto da pandemia é um pouco mais controlado, mas não o suficiente. O governo dos Estados Unidos cercou algumas áreas dentro de algumas cidades formando zonas de quarentena, que são administradas por militares. Fora desses novos muros, cidades foram dizimadas com bombardeios como medida para conter a infecção causada pelo fungo.
Mesmo que medidas tenham sido tomadas, alguns sobreviventes e algumas comunidades convivem no ambiente hostil fora das zonas de quarentena. A organização mais conhecida é um grupo chamado Vagalumes, formado por extremistas que convivem com cotidiano da sobrevivência do mundo exterior enquanto entram em conflitos com as forças governamentais.

Joel guarda a foto com a filha como recordação (Imagem: Pinterest)

Joel vive na zona de quarentena na cidade de Boston e um dia recebe a visita de sua amiga Tess (não fica expresso a relação deles no jogo). Tess relata a necessidade da cobrança de uma dívida na área portuária da cidade e eles partem juntos para o local. Através de Bill (o devedor da dívida), eles descobrem que armas foram vendidas para os Vagalumes, e é nesse exato momento que aparece Marlene, a líder do grupo extremista. Ela negocia com Joel e Tess, pedindo para que façam uma entrega pra ela na troca das armas compradas de Bill (nesse momento, morto ao lado deles). Tess convence Joel e ambos aceitam o trato. Eles só não contavam que o carregamento era uma menina chamada Ellie, de 14 anos. No meio do caminho, já fora da zona de quarentena, Tess acaba morrendo, então cabe a Joel levar Ellie até a base dos Vagalumes.

A jornada de Ellie e Joel através dos Estados Unidos os obriga a passar por diversas situações de perigo. Devido ao quadro social que o game usa como palco, os inimigos não-infectados que a dupla encontra pelo caminho estão muito bem armados, partindo de revólveres e rifles (armas de fogo) até armas brancas como tacos de baseball, pedaços de madeira e barras de ferro. Os militares atuam perto de zonas de quarentena, atuando no combate a contrabandistas e com ordem de matar pessoas infectadas. Já os caçadores atuam como saqueadores, que matam inocentes para aproveitar seus pertences em proveito próprio. Entretanto, os maiores problemas que a dupla enfrenta são os infectados pelo fungo Cordyceps. Estes dividem em quatro categorias, sendo elas corredores, perseguidores, estaladores e vermes (baiacus):

  • Os corredores são pessoas que estão no estágio inicial da infecção e por isso não apresentam muita alteração em seus corpos. Por conta disso, possuem visão suficiente para enxergar o ambiente e reagir ao som de objetos. Uma vez que reagem com movimentação do ambiente ao redor, o melhor jeito de derrubar um corredor é numa abordagem furtiva e longe da visão de outros inimigos. Num combate corpo a corpo, é possível derrubar um corredor com uma sequencia de socos ou com uso de armas brancas.
  • Perseguidores seria o estágio 2 da infecção pelo Cordyceps. Estes, já apresentam uma alteração na região maior do rosto, mas ainda assim conseguem enxergar movimentos no ambiente. Assim como os corredores, perseguidores também podem ser abatidos pelo método furtivo. No combate direto, o uso de armas brancas como tacos de baseball e barras de ferro são mais eficazes.
  • Os estaladores representam a grande dor de cabeça do jogo, uma vez que lidar com eles é mais trabalhoso. Nesse estágio, o fungo já alterou drasticamente o rosto do infectado, lhes privando de visão. Entretanto, os estaladores apresentam uma aguçada audição. O estalo que eles produzem funciona como um radar para detectar o som a sua volta. A melhor forma de derrubar um estalador é da maneira furtiva com facas. No conflito direto, armas de fogo sempre são as melhores alternativas. Barras de ferro ou tacos de baseball são quase ineficazes contra esse inimigo — até que o jogador consiga desbloquear essa habilidade nos upgrades. É necessário muita atenção em um ambiente com estaladores, já que a morte é certa quando eles conseguem agarrar a presa.
Estágios da Infecção do Cordyceps. Da esq. p/ dir. Perseguidores, Corredores, Estaladores, Vermes (Imagem: Steam Community)
  • Por fim, temos os Vermes (ou baiacus, segundo a dublagem do jogo). Nesse ponto de infecção, o fungo já mudou completamente a forma física do hospedeiro, alterando não só o rosto, como tronco e membros inferiores. Embora não seja tão ágil, e ser maior que os outros, um Verme conta com um recurso próprio que são as bombas de esporos, o quais eles arremessam contra inimigos. Para matar eles, é necessária a utilização de armas de fogo ou incendiárias apenas. Os vermes são imunes a armas brancas e, assim como estaladores, matam inimigos de forma instantânea.

O cordyceps é um fungo que realmente existe. Ele é um tipo de fungo endoparasita que cresce em insetos e afeta o cérebro do hospedeiro controlando-o como se fosse um zumbi.

Levar Ellie até o outro do lado do país não é uma tarefa fácil, principalmente pelos recursos que o game oferece durante jornada. A mochila que Joel carrega em suas costas serve como porta itens valioso, onde ele guarda objetos como fitas adesivas, pregos, álcool e mais instrumentos — todos necessários para alguma melhora temporária ou permanente de proteção, criação de kits de saúde ou upgrade de armas de fogo.

Bastões de madeira e barras de ferro tem uma durabilidade temporária, podendo atingir um número limitado de golpes nos inimigos até ficarem inutilizáveis. A produção de recursos para combate como bombas de pregos e fumaça podem ser feitos a qualquer momento do jogo, assim como o reforço material de bastões e barras, isso se o jogador dispuser de todos os itens para o upgrade temporário. Facas, coquetéis molotov e bombas de pregos também podem ser criadas a qualquer momento, também se caso os itens estiverem a mão. O jogador só precisa estar atento aos recursos que utilizar e tomar as decisões que podem influenciar no final das contas. Por exemplo, utilizando álcool, papel e fita adesiva, é preciso optar pela criação de um kit de primeiros socorros ou uma bomba de coquetel molotov.

As armas de fogo possuem um sistema diferente de atualização. Joel coleta instrumentos e ferramentas em gavetas e prateleiras ao longo do jogo, estes que são usados para o upgrade delas. Em algumas áreas seguras do game é possível fazer a atualização dessas armas, em mesas específicas.

Upgrade de armas é sempre feito em zonas seguras (Imagem: Gameplay VideoGameSource)

Joel em si também possui um sistema de upgrade pessoal. Coletando pílulas ao longo do jogo, é possível melhoras suas habilidades como recarregar armas mais rápido ou conseguir matar estaladores em combate direto usando facas.

Os únicos itens descartáveis, e que são encontrados frequentemente nos ambientes, são garrafas e tijolos. Pode não parecerem tão úteis, mas servem como arma para distração ou atordoamento de inimigos.

O sistema de combate de The Last of Us é o típico bater ou correr. Não é necessário acabar com todos os inimigos para passar uma área, a menos que isso seja extremamente necessário. Não será difícil encontrar-se em uma situação com duas balas na espingarda e escondido atrás de um balcão com estaladores caminhando por todo ambiente. O jeito é usar os recursos dos inimigos a seu favor e acabar com todos de um vez só ou apenas passar por eles. Jogando uma garrafa ou um tijolo atrairá a atenção dos inimigos para um único ponto, o que lhe dará a oportunidade de fugir ou jogar um coquetel molotov para queimar todos de uma vez.

A Naughty Dog, produtora do game, teve um cuidado especial para com a construção de The Last of Us. Primeiramente, a empresa dividiu a sua equipe, de forma que enquanto um grupo trabalhava na sequencia de Uncharted, o outro grupo ficou responsável pela produção de The Last of Us.
O game, que levou dois anos para ficar pronto, contou com a tecnologia de captura de movimentos. Joel é interpretado por Troy Baker, ator que já trabalhou em outros títulos como Batman: Arkhan Origins, Call of Duty: Advance Wars e Far Cry 4. Quem dá vida à Ellie é a atriz Ashley Jonhson que já atuou em séries como CSI, The Mentalist e Blindspot, filmes como Vingadores e Nação Fast Food: Uma Rede de Corrupção. Ashley foi dubladora de Gwen no desenho Ben 10: Invasão Alienígena e Jovens Titãs, onde dublou a personagem Terra. Em games, ela participou de Minecraft: Story Mode 2. Quem dá vida a Marlene, líder dos Vagalumes, é a atriz Merle Dandridge (“Suits”, “Greenleaf”, “Criminal Minds”). Tess é vivida pela atriz Annie Wersching (“Castle”, “StarTek: Enterprise” e “Hawaii Five-0”).

Bastidores da captura de movimentos durante a produção do jogo (Fonte: YouTube NeoGamer — The Video Game Archive)

Dentre os personagens, Ellie chamou muito a atenção dos fãs no primeiro trailer divulgado publicamente. A semelhança com a atriz Ellen Page com a personagem era explícita. A Naughty Dog nunca se pronunciou a respeito, mas Ellen, questionada sobre o fato, respondeu estar chateada com “homenagem”. Na época, a atriz aparecia em outro game exclusivo do PlayStation 3, Beyond: Two Souls.
A música do game foi composta por Gustavo Santaolalla, que trabalhou em trilhas sonoras cinematográficas, como “Diários de Motocicleta” e “O Segredo de Brokebrack Mountain”. As notas ouvidas durante a jornada do game foram compostas acompanhando a produção do mesmo. Não é a toa que a imersão no game é mais profunda enquanto se ouve as notas de violão em alguns momentos.
A inspiração para os cenários do game, vieram do livro chamado “Um Mundo Sem Nós” de Alan Weisman, que retrata como seria um mundo sem os seres humanos.

Nesses dois anos de produção, Naughty Dog esculpiu um game, observando os mínimos detalhes. O expressionismo caracterizado pelos personagens (jogáveis e não jogáveis) e como isso se encaixa dentro contexto do game é simplesmente incrível. Ganhador de mais 200 prêmios, The Last of Us desenvolve uma história grandiosa por trás do efeito de sobrevivência cotidiana. A arte do storytelling é magnífica, já que é possível ver que a sequencia de acontecimentos durante o game aproxima Ellie e Joel. No início, Joel trata a garota com frieza e estranhamento. À medida que a história avança, eles passam a se ajudar e Joel passa a conversar mais com a garota. Até a chegada à base dos Vagaumes, os personagens constroem uma relação pai e filha, de proteção e reciprocidade. E após tantos acontecimentos, o final de The Last of Us mostra-se enigmático. A extração do Cordyceps de Ellie resultaria em sua morte, uma vez que o fungo se instala no cérebro do infectado. Sobre os ombros de Joel, pesa a responsabilidade afetiva para com a menina. Seria certo deixá-la morrer para a produção de uma cura para toda a humanidade ou salvá-la por ela conseguir preencher um espaço vazio deixado pela filha?

Mesmo com um final aberto, o game foi feito para não receber uma continuação. Entretanto, o sucesso obrigou a Naughty Dog a trabalhar em uma versão remasterizada e em uma sequencia, que será lançada em 2020 (esse texto foi escrito uns dias depois do anúncio da data de lançamento) exclusivamente para PlayStation 4. A emissora HBO também confirmou a produção de uma série inspirada diretamente no game.

No Brasil, The Last of Us ganhou uma dublagem impecável. Joel é dublado por Luiz Carlos Persy, que já deu vozes a personagens como Lex Luthor (animações “Liga da Justiça” e Liga da “Justiça: Sem Limites”), Gandalf (“O Hobbit”) e Lord Valdemort (saga “Harry Potter”). Quem dá voz a Ellie é Luiza Caspary, cantora, compositora e que já trabalhou na dublagem do game Child of Light. As vozes dos personagens conta, também, com nomes gigantescos da dublagem brasileira como Miriam Ficher (mais conhecida por dar voz a Drew Berrymore em filmes como “As Panteras” e “Como se Fosse a Primeira Vez”), Mauro Ramos (deu voz a “Shrek” e também Pumba nos desenhos de “O Rei Leão”), Julio Chaves (já foi Smithers em “Os Simpsons” e Marlin em “Procurando Nemo” e “Procurando Dory”), Mabel César (que já deu voz a Catherine Zeta-Jones em alguns filmes, Jessie de “Toy Story” e Jay Kyle em “Eu, a Patroa e as Crianças”) e Clecio Souto (que deu voz ao Capitão América nos filmes da Marvel). A dublagem do game é feita também pelo ator Marcos Verza e Midian Almeida, locutora.

Primeiro trailer de The Last of Us, publicado em 8 de maio de 2013 (Fonte: YouTube PlayStation Brasil)

The Last of Us é um título mais que obrigatório no currículo de um gamer de carteirinha. O fator replay (jogar mais de uma vez) é altíssimo, já que reviver momentos que o game traz (medo, receio, furtividade, destreza, lógica…) é prazeroso. A equipe da Naughty Dog não mediu esforços em entregar aos fãs um dos melhores títulos já vistos, com enredo gigantesco, com cuidado nos mínimos detalhes e diversão garantida. The Last of Us é imperdível.

Fontes:
TechTudo, AdoroCinema, IMDb, Jovem Nerd

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Rafael Costa
O Costaverso

Acadêmico de Jornalismo da Unipampa, redator do Blogando, comunicador, fotógrafo, leitor e criador de memes.