EDUCAÇÃO

Caminhos desconhecidos

Jovens que deixam seus estados e cidades em busca do ensino superior em Porto Alegre enfrentam desafios

Alice Pissollatto
Cotidiano Incomum

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Sentimentos de solidão e insegurança podem ocupar espaço na bagagem dos alunos que decidem estudar longe de casa | foto: freepik.com

Você já desejou, nem que só por um instante, mudar-se para um lugar distante sozinho? Se afastar da rotina conhecida, dos laços familiares e dos amigos para viver em um lugar em que não conhece nada, nem ninguém? Essa realidade é enfrentada por muitos dos estudantes que saem de suas cidades e estados a fim de ingressar em uma universidade, como Mell Matsuda, de 20 anos. “Lembro que numa quinta-feira eu recebi o e-mail da chamada da [Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre] UFCSPA. Segunda-feira eu já precisava estar com os documentos na fundação e iniciar as aulas. Tive sexta e sábado pra preparar tudo, no domingo eu me mudei.” Na época, moradora de Osório — a 104 quilômetros da capital gaúcha — Mell se inscreveu no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) com poucas expectativas e foi surpreendida com a conquista de uma vaga no curso de Informática Biomédica.

Esse movimento acontece devido a diversos motivos, desde a concentração de universidades brasileiras em centros urbanos e capitais, até a busca por cursos mais qualificados e na área desejada pelos estudantes. Na UFCSPA, instituição que Mell estuda, 21% dos alunos matriculados são de fora do Rio Grande do Sul. Já na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), 8% dos estudantes vieram de outros estados, principalmente São Paulo e Santa Catarina.

A possibilidade de ingresso nas faculdades pelo Sisu é um facilitador desse fenômeno, já que o programa, criado pelo governo federal em 2009, permite aos estudantes concorrerem a vagas em instituições públicas sem precisar se deslocar para realizar os vestibulares específicos de cada uma delas. O Sisu utiliza a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — prova que é realizada em todo o Brasil — como critério de avaliação centralizador. De acordo com o Ministério da Educação, a primeira edição do Sisu deste ano contou com 1.073.024 inscritos e ofertou mais de 226 mil vagas de graduação.

Vivendo a cidade

Se enfrentar uma mudança para um lugar desconhecido já costuma ser algo apavorante, quando se é jovem e se está sozinho, pode ser mais ainda. “Tem a questão de tu não ter a presença de uma outra pessoa ali, alguém que te apoie. Você vai estar só, lide com isso”, diz Mell, que precisou conviver com a solidão nos primeiros meses. “Não consegui me adaptar muito fácil com as pessoas, comecei uma amizade, não me adaptei, outra pessoa se afastava, então eu me sentia um pouco perdida.” Hoje, no terceiro semestre do curso, a estudante já se sente mais ambientada em Porto Alegre.

Martina Malschitzky, de 19 anos, saiu de Ijuí para cursar Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A aluna, que está no primeiro semestre, comenta com entusiasmo sobre a mudança para a cidade e celebra a possibilidade de contato com pessoas com vivências tão plurais na capital, mas destaca como desafio o alto custo de vida em Porto Alegre. “Os valores das compras de mercado, de transporte, são bem mais altos que no interior.” Martina explica que o aspecto financeiro também se torna complicado devido à necessidade de arcar com os custos do aluguel do apartamento em que mora, mas que, apesar de tudo, fazer faculdade e morar em Porto Alegre é a realização de um sonho.

João Pedro Lafene, de 20 anos, saiu de mais longe ainda. Aproximadamente quatro mil quilômetros separam Porto Alegre de São Luís, no Maranhão, cidade em que morou por 17 anos. O jovem se candidatou para estudar Relações Internacionais na UFRGS pela boa avaliação do curso e porque as universidades próximas à sua cidade não ofereciam essa formação. Cursou os primeiros semestres no Ensino Remoto (ERE) direto do Maranhão devido à pandemia do Covid-19 e só se mudou para Porto Alegre quando as aulas retornaram de forma presencial. João Pedro contou com a companhia da mãe, que tirou um mês de férias para ajudá-lo na adaptação na cidade. “Pude conhecer as pessoas que eu só conhecia como letras na tela do computador e no chat. Foi uma experiência bem interessante. Algumas pessoas já se conheciam, já tinham uma rede de amizade em Porto Alegre, eu precisei construir isso.”

João conta que encontrou entre os colegas muitos que, assim como ele, vinham de outras regiões, e que isso facilitou a sua adaptação. Conta ainda que se incomoda um pouco com a falta de segurança na cidade. “Lá em São Luís, por exemplo, eu morava perto do centro também, e eu, pelo menos, ando com o olho um pouco mais aberto aqui. Pra quem mora na Cidade Baixa, que é o meu caso, a vida noturna do bairro muitas vezes não contribui nem com a segurança, nem com o silêncio.” Mesmo assim, João Pedro não deixa de conhecer a cidade gaúcha e frequentar a feirinha do Parque da Redenção aos finais de semana.

“Essa independência é boa, dá uma sensação boa. É igual pular de paraquedas, né?”, Guilherme Caiasso, que se mudou para Porto Alegre para cursar Informática Biomédica.

Guilherme Caiasso, de 20 anos, saiu de São Paulo, também estuda Informática Biomédica na UFCSPA e conta que foi a infraestrutura da faculdade que chamou sua atenção. Como o pai era relutante com a saída de Guilherme por questões financeiras, o jovem embarcou para a cidade somente após conseguir um trabalho remoto. “Essa independência é boa, dá uma sensação boa. É igual pular de paraquedas, né? Você tem certeza que a sensação vai ser legal, mas tem medo da queda.”

O jovem relata que encontrou dificuldade para criar conexões na cidade e que sua facilidade de se comunicar com pessoas desconhecidas aumentou, mas a de confiar em pessoas desconhecidas diminuiu. “Há mais de um ano que eu estou aqui, eu tenho um laço próximo mesmo é com três pessoas.”

Além disso, Guilherme chama a atenção para a importância de se preocupar com a própria saúde ao realizar uma mudança como essa. “Desde os sete anos eu vou ao psiquiatra todo mês, e isso é difícil de organizar sozinho. Então, nos primeiros meses, eu acabei não conseguindo frequentar esse tipo de médico, comprar remédios. Acho que isso é algo que alguém que está se preparando para morar sozinho em outra cidade deve se atentar, para se planejar melhor.”

Acolhimento universitário

Desde 2020, a UFRGS oferece um espaço de cuidado e debate sobre saúde mental de graduandos e pós-graduandos por meio do programa de extensão Medusa, do Instituto de Psicologia. O professor responsável, Moises Romanini, doutor em psicologia social, observou que, quando o isolamento social iniciou, muitos alunos tinham acabado de chegar na cidade, confinados, não conheciam nada. “Eu lembro que mais ou menos ali em julho, agosto de 2020, em um grupo online de dez pessoas, oito eram de fora de Porto Alegre, então o nosso trabalho naquele momento tinha um foco. Por exemplo, eu abria o mapa de Porto Alegre e compartilhava a tela pra dizer ‘Ah, aqui é a universidade, nesse caminho você encontra isso’, de lugares culturais a bares. Apesar de tudo fechado, queríamos ajudar a criar um efeito de pertencimento à cidade e à universidade.”

Agora, com reuniões semanais no Campus Saúde e no Campus do Vale, o professor conta que uma questão que aparece com frequência entre os estudantes, principalmente os que vêm das regiões norte e nordeste do país, é a dificuldade de se sentir acolhido pelas pessoas em Porto Alegre e dentro da própria universidade. “Eu já ouvi relatos bem fortes, quase beirando, assim, um limite muito tênue com xenofobia.” Moises acrescenta que o povo gaúcho pode tender a ser culturalmente fechado, desconfiado e pouco acolhedor. No ambiente universitário, não é diferente. “Para que a gente consiga de fato acolher esses estudantes que vem de fora, é preciso um movimento das universidades e da cultura universitária, para que seja mais solidária, mais cooperativa. Eu acredito que o caminho seja esse.”

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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