FISCALIZAÇÃO

Ilegal na teoria, mas não na prática

Julia Caye
Cotidiano Incomum
Published in
6 min readSep 6, 2023

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A complexidade da fiscalização na comercialização de um dos aparelhos que mais cresceu em popularidade entre os jovens

Foto: Nijat Nasibli/iStock Photos

Mesmo que a venda do cigarro eletrônico esteja proibida no Brasil desde 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são muitos os vendedores ambulantes que comercializam o aparelho em Porto Alegre. Esse cenário se propaga no Brasil inteiro. Um levantamento feito em 2023 pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) mostrou que o consumo de cigarros eletrônicos no Brasil quadruplicou entre 2018 e 2022. Os aparelhos, que também são chamados de vapes, cigs ou pods, ficam misturados nas bandejas dos ambulantes com chicletes, balas e outros produtos perto de locais onde há festas. Esses cigarros eletrônicos também são vendidos em lojas de tabacaria ou por meios digitais.

A Anvisa concluiu que o uso dos dispositivos eletrônicos para fumar está relacionado com diversos danos à saúde pulmonar, cardiovascular e neurológica. Além disso, segundo a médica pneumologista Alice Martins, o vape atrai novos consumidores, e não é uma boa alternativa para quem busca parar de fumar os cigarros convencionais. “Os cigarros eletrônicos são perigosos, pois atraem os jovens com os diferentes sabores e tem uma propaganda de que são uma opção melhor para os fumantes. Na prática não é bem assim, é como trocar uma substância tóxica por outra e não tratar o fator principal que é a dependência”, afirma a médica.

Sophia Nicolini, de 20 anos, é um exemplo de quem começou a usar o aparelho por influência dos amigos. Ela saiu de Florianópolis para cursar Publicidade e Propaganda em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela diz que não imaginava que iria começar a fumar cigarro eletrônico, mas quando os amigos passaram a utilizar essências que ela gostava e até a presentearam com um vape no seu aniversário, ela não resistiu.

“Se eu tenho um objetivo, se quero ir para a academia depois, por exemplo, tem vezes que eu não consigo ir por causa disso.”, Sophia Nicolini, estudante de Publicidade e Propaganda

A estudante lamenta ter adquirido esse vício e conta que, em eventos cotidianos, como aulas ou palestras, ela precisa sair algumas vezes da sala para ir à rua fumar. “É algo que afeta minha respiração e meu ânimo, porque eu trago e logo fico relaxada e até cansada, então depois não me dá vontade de ‘fazer nada’. Se eu tenho um objetivo, se quero ir para a academia depois, por exemplo, tem vezes que eu não consigo ir por causa disso. Criei um mecanismo de que, se eu quiser ir à academia daqui a uma hora, eu vou parar de fumar agora para conseguir ir”, relata.

Onde tudo acontece

Apesar da ilegalidade, o cigarro eletrônico não é o vendido discretamente. Ao se pesquisar “vape Porto Alegre” no Google, aparecem 829.000 resultados, e todos da primeira página são de lojas onde o cigarro pode ser adquirido. Outro espaço onde as vendas acontecem de forma abundante é nas redes sociais

Elisa Taniguchi, de 20 anos, passou a sua adolescência no Canadá, onde o produto é legal, e se mudou para Porto Alegre recentemente. Ela avalia que aqui a compra é mais acessível, pois não precisa nem sair de casa. “Tem uma loja online que eu sempre compro que é só mandar uma mensagem pra eles pedindo a lista dos pods. Aí eles mandam com os preços, eu escolho, mando meu endereço e eles mandam pra minha casa no mesmo dia”, conta Elisa

O proprietário de uma loja virtual de cigarros eletrônicos, que não quis se identificar por conta da fiscalização, revela que as suas vendas cresceram muito no último ano, porque, na sua opinião, as notícias e campanhas que tentam “destruir” o aparelho têm efeito contrário e dão mais força ao consumo. “Acho a cultura do vape sensacional, e não é o vício, é a cultura. Mudei a vida da minha tia, que desenvolveu câncer na garganta por causa do cigarro tradicional e, mesmo assim, não conseguiu abandonar esse hábito, mas trocou para o vape, com doses bem menores de nicotina, que desacelerou as consequências da substância”, opina, indo contra os argumentos da Anvisa e dos profissionais de saúde.

Mesmo não conseguindo registrar sua loja oficialmente, ele tem 26 funcionários, em posições que vão de vendedores até motoqueiros que realizam as entregas. No perfil do empreendimento nas redes sociais, são mostradas curiosidades e informações sobre marcas específicas. Além disso, a loja realiza ações em eventos públicos, contando até mesmo com a identificação da marca em camisetas. Segundo o comerciante, a média salarial de seus funcionários é muito acima do valor do mercado efetivo, e ele realiza entre 1.600 e 2.000 vendas mensalmente.

Ele afirma nunca ter tido produtos apreendidos ou ter sofrido nenhuma abordagem, seja da Polícia ou da Receita Federal, mas ressalta que não vende produtos para menores de 18 anos.

Mas, afinal, como é feita a fiscalização?

De acordo com a Resolução Federal de Diretoria Colegiada da Anvisa número 46, é proibida a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, entre eles o cigarro eletrônico. Na prática, a fiscalização acontece de duas formas: em âmbito nacional são feitas operações policiais, ou apreensões na fronteira, e, em âmbito regional, é realizada fiscalização de lojas físicas somente a partir de denúncias.

Em Porto Alegre, o agente fiscalizador é a Vigilância da Saúde. De acordo com Marcelo Coelho, agente de fiscalização e chefe da Equipe de Vigilância de Saúde Ambiental e Águas de Porto Alegre, as denúncias da população acontecem sazonalmente, na maior parte das vezes quando as pessoas tomam conhecimento, pela mídia, de que a comercialização do cigarro eletrônico é ilegal. De acordo com ele, os locais com o maior número de denúncias em Porto Alegre são a Cidade Baixa e o 4º Distrito, e o principal atrativo para os jovens é a propaganda desses aparelhos. “O marketing é muito forte, porque eles [os vendedores] passam a ideia de que o cigarro eletrônico substitui o cigarro normal e que ele teria tantos por cento a menos de produtos químicos, mas eles não devem levar em consideração quantos jovens olham para o negócio bonitinho desses e começam a fumar. O que acontece é que ele não substitui, na verdade ele funciona como porta de entrada para o vício”, diz Marcelo.

A Polícia Federal trabalha com a repressão, e não com a fiscalização, realizando operações que buscam identificar todos os envolvidos no crime. As buscas também são feitas a partir de denúncias, que acontecem diariamente, segundo o delegado Cristiano Gobbo, que atua nessas operações. Ele afirma que, na maior parte das vezes, os cigarros eletrônicos entram no Brasil pelo Paraguai. “A Polícia Federal busca sempre extinguir a criminalidade no todo, então vai atrás das pessoas envolvidas, tendo sempre como objetivo o macro. Não basta tu punir e criminalizar quem está vendendo, enquanto a pessoa que está fornecendo continua atuando. Então a gente busca sempre identificar todas as pessoas envolvidas na cadeia desse tipo, para ter um trabalho mais eficiente”, explica o delegado.

Caso seja comprovado que um indivíduo esteja comercializando uma grande quantidade de cigarros eletrônicos, ele pode ser indiciado por receptação, por ter comprado o vape no Paraguai, por exemplo. Há também a possibilidade de se tratar de um caso de contrabando, se a importação do produto tiver sido encomendada e em grandes lotes. A pena para ambos os crimes é a reclusão de dois a cinco anos.

Mesmo com todas as ações de fiscalização, as redes sociais ainda se configuram como uma terra sem lei. Atualmente, a Vigilância da Saúde não atua nos meios digitais. A Polícia Federal só agora está desenvolvendo projetos para começar a atuar no mundo virtual.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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