LGBT

Me chame pelo meu nome

Pessoas transgênero muitas vezes não têm seu gênero e pronomes respeitados, mas a nova carteira de identidade nacional é um passo na direção da inclusão

Guilherme de Mello Vivan
Cotidiano Incomum

--

A bandeira trans na Parada de Luta de Porto Alegre do dia 2 de julho de 2023. Foto: Guilherme Vivan

As pessoas trans não se identificam com o gênero ao qual foram designados no nascimento. Muitas delas escolhem ser tratadas por um novo nome e com outros pronomes que se adequem a sua identidade de gênero. Mas é comum que isso não seja respeitado, o que pode causar dores e constrangimentos.

Foi divulgado em abril pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) que, a pedido do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a carteira de identidade nacional (CIN) não deverá ter o campo “sexo” e sim apenas o campo “nome”. O nome será declarado pelo indivíduo no ato da emissão, extinguindo também a distinção entre nome social e nome do registro civil (ou nome morto). As duas informações não constavam no modelo antigo de identidade, emitido nas últimas décadas em todo o país, mas foram incluídas no documento no governo Bolsonaro. O decreto regulamentando essas alterações tinha sua publicação prevista para o final de junho, mas isso ainda não foi feito. O MDHC não soube responder a razão da demora e a reportagem não obteve resposta do MGI . Essas mudanças serão fundamentais para amenizar os constrangimentos sofridos pela comunidade trans.

“É uma forma a menos de deslegitimar a gente”, Ávine Fernandes Pereira, travesti e comunicadora

No espaço público

Membro importante da cultura de Ballroom porto-alegrense, um movimento de protagonismo de pessoas trans e negras, Ávine Fernandes Pereira, travesti de 27 anos, reconhece que essa mudança é muito importante: “É uma forma a menos de deslegitimar a gente”. Mesmo ela, que já tem o nome retificado nos documentos há mais de dois anos , ainda ouve seu nome morto sendo usado em espaços públicos. Ela conta que uma amiga sua também travesti e que estava doente, depois de evitar ao máximo ir ao hospital justamente para evitar humilhações, se viu obrigada a ir. Chegando lá, teve seu nome morto estampado em uma tela e lhe chamaram em um microfone por ele.

Maria Inês Rodrigues Lobato, psiquiatra que coordena o Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero (Protig) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) reconhece que em muitos hospitais isso ainda é um problema. É algo que melhorou muito desde que o Protig começou, em 1998, mas ainda existem enormes bolsões de preconceito, conta. Além disso, a médica explica que existem vários tipos de preconceito e um deles é o internalizado pela própria pessoa trans: como ela já sabe que será discriminada, nem busca o atendimento.

Ávine relembra que o processo de retificação do nome social é muito demorado, burocrático e caro. Ela diz que gastou cerca de 600 reais em todo o processo de alteração. Como o nome da nova CIN será autodeclarado, poderia ser uma solução mais acessível para o reconhecimento e tratamento adequado em espaços como hospitais e repartições públicas. E, mesmo com o nome social, alguns espaços, como é o caso dos hospitais, por lei, precisam registrar o nome civil nos documentos, mesmo que chamem a pessoa pelo nome social.

“Ninguém vai virar gay ou trans se eu quiser, como não vira hétero se quiser”, Maria Inês Rodrigues Lobato, psiquiatra

“Sabe o que é parecer ‘Guilherme’ e teu nome ser ‘Maria’? É um fator de constrangimento, de não acolhimento, de não aceitação total”, explica a psiquiatra. De acordo com Analise de Souza Vivan, psicóloga especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, não ser referenciado pelo gênero correto pode ser entendido como um estressor. “Estressor é tudo aquilo que vai nos demandar uma energia maior do que temos capacidade naquele momento”, explica. E, quando o indivíduo passa por isso, pode desenvolver transtornos, principalmente de ansiedade e depressão, entre outros, se tiver predisposição genética. A falta de moradia e prostituição, aos quais pessoas trans estão mais vulneráveis, são outros fatores de estresse que, de acordo com Maria Inês, podem levar a dependência química, depressão, pânico e outros problemas.

A família

A psicóloga Analise afirma que o preconceito acaba tendo muito mais força se parte de uma pessoa próxima, como um familiar ou amigo. “Isso vai ter um impacto muito maior na minha autoestima do que uma pessoa, por exemplo, que eu encontrei no supermercado e me disse alguma coisa”, exemplifica. E muitas pessoas transgênero não têm seu nome respeitado em casa.

Com 19 anos, Andreas Czichocki estuda Medicina Veterinária e mora com sua família. Ele é um homem trans e conta que tem se surpreendido positivamente com os professores e colegas da universidade. Lá é respeitado por todos e, caso alguém confunda seu gênero e use o pronome errado, ele explica e todos entendem e se corrigem.

Mas sua família nem sempre o trata pelo nome e gênero corretos. Isso é bastante desconfortável para ele, pois se espera que a família seja um local de apoio. “Eles não são o teu apoio número um algumas vezes, então tu tem que procurar a tua própria família fora”, conta.

Combatendo preconceitos

Apesar desses preconceitos serem dolorosos, nem sempre são intencionais. A psicóloga entende que várias dessas situações estressoras acontecem por falta de conhecimento das pessoas pouco familiarizadas com o assunto. Ela diz que é importante que haja um esforço para que essa temática seja discutida e apresentada para todos. Uma possibilidade de terapia que é mais barata do que o atendimento individual é a terapia em grupo. Segundo Analise, ela apresenta, do ponto de vista da saúde pública, ótimos resultados. Maria Inês aposta na educação. Um exemplo que ela traz é o tema da ecologia, que foi amplamente discutido nas escolas e assimilado com muita eficiência por uma geração inteira, comenta.

“Todo mundo é transfóbico, não existe forma de pensar que as pessoas não são transfóbicas”, Ávine Fernandes Pereira

A psiquiatra explica que, como médica, sua função não é fazer ativismo, mas promover informação. “Tem que explicar para as pessoas que isso não é uma vontade. Ninguém vai virar gay ou trans se eu quiser, como não vira hétero se quiser. Isso é uma condição humana.”

As redes sociais também são um meio potente de promoção de informação. Ávine desenvolve no Instagram um projeto chamado travatalk, com o objetivo de trazer representatividade e aumentar sua voz. Ela busca educar sobre problemas das pessoas trans e travestis, conta sua história e tira dúvidas sobre o assunto. “Todo mundo é transfóbico, não existe forma de pensar que as pessoas não são transfóbicas, da mesma forma que é impossível pensar que a gente não é racista”, afirma Ávine.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

--

--