CONSUMO

Muito além do virgulado

Por trás do consumo de tênis que custam em média R$1.500, jovens e adultos se inspiram no estilo de vida da marca Nike, sejam eles originais ou não

Nicole Röhers
Cotidiano Incomum

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Foto: Nicole Röhers
Nike estima que 1 milhão de réplicas são vendidas por ano no Brasil, segundo pesquisa feita pela Folha de S. Paulo | Foto: Nicole Rohers

O ato de comprar um tênis inspirado em algum ídolo se tornou comum na vida de jovens no Brasil. O marketing da Nike, focado em não ser apenas mais uma no mercado, mas sim a representação de um estilo de vida, cativa milhares de fãs no país. A marca, que em 2022 investiu mais de U$527 milhões em publicidade e faturou mais de U$7,9 bilhões, conseguiu agregar um valor interessante a seus produtos: uma identificação com o mundo do hip-hop. Dentro desse fenômeno de consumo, diversos jovens e adultos desfilam com a tendência do virgulado, nome dado em músicas de trap para a marca.

Com influência do rap e do estilo Streetwear, o símbolo da Nike circula por toda cidade nos tênis e nas roupas de boa parte da sociedade. Digitais influencers com mais de 280 mil seguidores viralizam com a cultura Sneakers, como são chamados os admiradores e colecionadores de tênis. Modelos como Nike Air Jordan ou Nike Dunk, ambos criados em 1985, custam na média R$1.200. Esses tênis são vendidos para as classes de A a D, sejam eles originais ou réplicas — aí com preços bem mais baixos. Inserida no mundo do rap, do futebol, do basquete e de criadores de conteúdo no mundo inteiro, a marca usa celebridades para disseminar-se entre seus consumidores.

A grande alavanca dessa estratégia começou com o Nike Air Jordan. Somente esse modelo faturou U$5,1 bilhões desde seu lançamento. O tênis que carrega o nome do jogador de basquete Michael Jordan movimenta o mercado desde 1985 em uma venda baseada na influência que Jordan carrega. Com o sucesso da edição, a marca continua investindo nesse tipo de publicidade.

Lucca Luz, de 19 anos, estudante de economia na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), compra atualmente um tênis por mês. O seu estilo inspirado no Streetwear faz com que ele prefira comprar modelos de edição limitada da Nike e com características diferentes. Ele afirma que gosta de ter tênis que nunca viu outra pessoa do círculo social dele comprar.

Segundo Lucca, a marca passa um estilo de vida que ele gosta, como, por exemplo, o skate, o rap, e o surfe. Uma das suas inspirações é o cantor de hip-hop Travis Scott, que tem seu nome em uma coleção que a Nike lançou em maio de 2022. Os tênis novos da linha custam no mínimo R$3.000. Atualmente Lucca trabalha em uma empresa de investimentos e compra os seus próprios tênis, mas antes eram os pais que o presenteavam. “Vai pagar o que, de R$1.000 a R$1.500 ou mais em um tênis. Hoje eu posso, hoje eu consigo com meu recurso. Não vou gastar mais dinheiro do meu ‘coroa’. Achava chato gastar uma grana dessas do pai. Então desde que comecei a trabalhar, fui mais atrás”, explica Lucca.

“Eu vou comprar uma réplica, porque quero me sentir que nem os cara. Eu quero andar que nem o Jordan, mano”, Bruno, consumidor da marca

Bruno Menezes, também de 19 anos, é consumidor e já foi vendedor dos tênis da marca no Canoas Shopping, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Nas suas vendas, muitas vezes usava como estratégia falar do uso dos tênis pelos famosos. Um exemplo foi quando um cliente, que estava inseguro e indeciso com a compra, decidiu de fato comprar quando Bruno usou o argumento de que aquele tênis era o modelo que o rapper Eminem usava.

Bruno tem uma coleção de 10 tênis da Nike, somados entre originais e réplicas. Um deles é especial, da coleção Travis Scott, que custa em média R$16.000. Mas Bruno pagou R$500 reais, por ser uma réplica. Ele afirma não se importar com o fato do tênis ser falsificado e diz que o mais importante é o estilo que a marca passa. “O cara que quer ter Nike ele não vai se importar com o valor. Se ele ver assim: poxa esse Jordan é R$16.000. Como é que eu vou comprar, mano? Eu vou comprar uma réplica, porque quero me sentir que nem os cara. Eu quero andar que nem o Jordan, mano”, relata Bruno.

Sobre pertencimento e capitalismo

Esse tipo de comportamento de consumo não é um fenômeno recente. Desde a época da monarquia já existia, quando a população passou a ter acesso aos meios de consumo. A doutora em comunicação e professora da Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS) Elisa Piedras explica que, simbolicamente, todos têm acesso a produtos como os tênis da Nike. A questão é que poucos possuem condições financeiras para comprá-los.

Elisa, que ministra a disciplina de comportamento de consumo no curso de Publicidade, pontua que a linha de falsificados surge quando o consumidor não tem condições financeiras para adquirir o bem, mas quer entrar no universo e no estilo de vida que esse bem transmite. Os produtos que não são originais possibilitam que os sujeitos possam participar e muitas vezes serem aceitos dentro de uma sociedade que classifica as pessoas pelo que elas vestem e usam.

“Sobre o consumo também. Quando tu vai tomar uma decisão de compra ou de uso de um bem, tu quer fazer parte daquele grupo. Mas tu também tá fazendo isso pra te distinguir do grupo que não usa aquilo”, Elisa, professora da UFRGS

Sobre a inspiração vinda do rap e do hip-hop, Elisa explica que uma das variáveis para a escolha de um produto são os grupos, mais especificamente os grupos de referência. Eles inspiram as pessoas, e elas consomem por querer se parecer com essas referências. Muitas vezes as práticas de consumo e os bens escolhidos estão a serviço dessa identificação das pessoas com outras, como uma forma de pertencimento.

Como Elisa afirma, quando alguém diz sim sempre para algo, também está sempre dizendo não para outras coisas. “Sobre o consumo também. Quando tu vai tomar uma decisão de compra ou de uso de um bem, tu quer fazer parte daquele grupo. Mas tu também tá fazendo isso pra te distinguir do grupo que não usa aquilo”, diz a professora.

A sociedade está inserida em uma cultura capitalista de consumo, e é importante perceber que a escolha de um determinado produto vai muito além do que a compra de um bem material. Quando Bruno e Lucca escolhem um tênis virgulado, dizem sim para todo o significado dessa marca e também dizem não para aqueles produtos que não usam.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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