COMPORTAMENTO

Não é um cinema “normal”

Enquanto os cinemas de rua ganham cada vez mais popularidade entre os porto-alegrenses, existe uma exceção que não é muito comentada pelo público

Manu Couto
Cotidiano Incomum

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Parede de cartazes de filmes pornô na entrada da Locadora Atenas | Foto: Manu Couto

Em 2023, Porto Alegre ganhou mais um cinema de rua. No dia 20 de julho, o Cine Victoria voltou a abrir as portas, exibindo filmes comerciais com um ingresso mais barato do que as salas de shopping. Foi uma proposta bem recebida pelos porto-alegrenses, que já estão acostumados a ver filmes em outros cinemas desse tipo — como a Cinemateca Capitólio, a Sala Redenção, o Cine Bancários e a Cinemateca Paulo Amorim. Além de serem uma alternativa ao circuito mainstream, são também locais de conexão entre frequentadores, onde criam-se comunidades de pessoas com gostos parecidos. Entretanto, em uma esquina da avenida Júlio de Castilhos, existe um cinema de rua pouco mencionado pelo público.

Escondido no caos do centro da cidade, esse lugar pode passar despercebido, mas quem olha com atenção costuma surpreender-se. Ao atravessar a rua, um casal mostra interesse em entrar, mas em seguida começa a rir: “Nossa, eu não tinha visto! Não é um cinema normal”. Os letreiros na fachada do prédio logo revelam o motivo do choque. “Somente filmes pornôs sempre com ótimos lançamentos” é o que está escrito na entrada da Locadora Atenas, em letras garrafais, acompanhadas do desenho de pimentas pegando fogo.

Entrada da Locadora Atenas | Foto: Manu Couto

O espaço, que também já se chamou Cine Áurea, é parte da primeira rede de cinemas pornô do Rio Grande do Sul e hoje é o último que se mantém aberto em Porto Alegre. São três andares, que contam com cabines de vídeo, darkroom (ou salas escuras) e quartos privativos, além de uma sala de cinema — entretanto, apesar do título de locadora, não há um espaço para aluguel de DVDs. Os ambientes são extremamente escuros, todos vandalizados de alguma forma e iluminados apenas pelas telas que passam os filmes pornográficos. É possível ouvir gemidos de prazer vindo de algumas cabines. O cheiro de gozo não é dos melhores. Em funcionamento desde 1995, é um lugar que possui muitas histórias, incluindo dois incêndios criminosos e muitos fregueses peculiares. A história do idoso que contratou uma garota de programa e morreu antes de fazer sexo é a mais repetida.

O criador da Locadora Atenas é Orlando Lopes, que foi o responsável em trazer o cinema pornô ao Rio Grande do Sul, no final da década de 1970. Após uma viagem a São Paulo, em que observou locais parecidos em funcionamento, ele percebeu no mercado da pornografia uma chance de ganhar dinheiro. Além de abrir três cinemas pornô na capital, ele também foi dono de cinemas de shopping no litoral e, por um tempo, a sua família foi proprietária do Cine Victoria, reaberto em julho. Antes disso, Orlando era conhecido por atravessar o interior do estado projetando filmes ao ar livre com sua esposa, Valmira.

A Locadora Atenas atrai todos os tipos de públicos, dispondo de uma clientela fiel que se mostra muito interessada em frequentar. Há pessoas que aparecem diariamente, assim como aquelas que saem do interior aos fins de semana para visitar o local. O cinema usufrui dessa popularidade, já que não é, afinal, apenas um espaço para ver filmes pornô. É o que chamam de “casa de pegação”, com um público que consiste, em sua maioria, em homens acima dos 40 anos que se atraem por outros homens.

Caixas de camisinhas e lubrificantes na recepção da Locadora Atenas | Foto: Manu Couto

“Como muitos dizem: se for pra eu ser homem, sou com minha esposa. E aqui eu quero ser outra coisa”, Jaqueline Dias, faxineira da Locadora Atenas e garota de programa.

Às escondidas

São raros os clientes do cinema pornô que vão assistir aos filmes. Ou, pelo menos, apenas para isso. Enquanto o filme é um incentivo, o real atrativo é a possibilidade de sexo — seja com as garotas de programa ali presentes ou com outros frequentadores. Normalmente, as cabines são utilizadas para esses momentos.

Contudo, nem todos aqueles que vão para ter relações sexuais querem ser vistos. Como os funcionários sempre repetem, a discrição nessas horas é indispensável. “Muitos dos que vêm aqui são casados com mulheres, tem filho, tem mulher, o ‘escambau’. E a família não pode saber da opção dele, então ele se camufla na família, e aqui eles vem para ter esses prazeres”, comenta Jaqueline Dias, que trabalha ao mesmo tempo como faxineira e garota de programa do lugar. Porém, esse não é o único motivo de tanto sigilo.

“São raríssimos os que vem para ser o homem da relação, ali no ato. A maioria é sendo a mulher e eu sendo o homem”, explica ela. Jaqueline é uma mulher trans, que faz programa na Locadora Atenas justamente por já ter ali um público cativo. Segundo ela, há clientes que saem há mais tempo com ela do que os anos que têm de casados. “Como muitos dizem: se for pra eu ser homem, sou com minha esposa. E aqui eu quero ser outra coisa”, complementa Jaqueline.

Sala de cinema no 3° andar da Locadora Atenas | Foto: Manu Couto

“Naquela época e até hoje, é um lugar que tu expressa toda a tua liberdade de ser. Tu és e pronto”, Luiz Fernando Munhoz, ex-bilheteiro da Locadora Atenas.

Canto de refúgio

“Aqui é muito bom, muito bom mesmo. Tanto que venho aqui desde a época do Cine Áurea”, exclama Sérgio, um dos poucos clientes da Locadora Atenas que se disponibilizou a realizar uma entrevista, mas sem revelar o sobrenome. Abertamente gay, ele frequenta o espaço há mais de 10 anos. Enxerga o local como um ponto de encontro e fala entusiasmado: “É espairecer, conhecer pessoas… É bom, é muito bom. A gente cria vínculos aqui, tem amigos de anos já que vêm aqui”. Assim como Sérgio, os frequentadores costumam falar dos amigos que criam e costumam encontrar ali. Sejam eles parceiros sexuais ou não, percebe-se que há um senso de comunidade entre essas pessoas. Quando questionados se sentiam-se confortáveis expressando sua sexualidade dentro do espaço do cinema, todos os frequentadores afirmaram que sim.

O contraste com a realidade exterior ao cinema é grande, visto que o Brasil mantém-se como o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, como é apontado no Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, realizado pela última vez em 2022. As dificuldades de manifestar sexualidades dentro do espectro LGBTQIA+ em segurança é o grande motivo pelo qual se tem o hábito de ir à Locadora Atenas. A maioria dos clientes têm o costume de frequentar há, pelo menos, mais de 15 anos — e relembram épocas em que o cinema era o único espaço em que se sentiam confortáveis para serem quem são, sem restrições ou punições. “A gente tinha que se comportar de maneira diferente, porque batiam. Uma vez eu apanhei por causa disso”, diz Luiz Fernando Munhoz, bilheteiro substituto da Locadora Atenas. Fernando estava trabalhando na Atenas por tempo indeterminado, no lugar de um empregado em licença saúde. Contudo, antes disso, era um frequentador do local há cerca de 20 anos. “Naquela época e até hoje, é um lugar que tu expressa toda a tua liberdade de ser. Tu és e pronto”, ele declara.

Mesmo com os avanços da sociedade em relação às pautas LGBTQIA+, como a legalização do casamento gay e a criminalização da homofobia no Brasil, locais como a Locadora Atenas ainda se mantém presentes como espaços de refúgio. “Hoje esse tipo de lugar ainda se faz necessário porque a gente vai continuar tendo o mesmo tipo de sociedade”, comenta Luis, também cliente do cinema. Ele frequenta o espaço há 25 anos e percebe as diferenças que as mudanças recentes trouxeram, mas não vê saída para uma transformação radical de costumes. “Vão mudar leis, vão haver aberturas, mas a sociedade não vai mudar. Então, esse tipo de lugar sempre vai existir”, afirma ele com convicção.

Reportagem produzida para disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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Manu Couto
Cotidiano Incomum

Estudante de Jornalismo na UFRGS. Interessada por tudo que a área da comunicação envolve, mas gosto de me aventurar pelas artes também.