COMPORTAMENTO

Nada se perde, tudo se transforma

O que tem atraído cada vez mais pessoas a trocarem as novas peças dos modelos de fast fashion pelas roupas de segunda mão dos brechós

Vitória Silveira
Cotidiano Incomum

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Brechó Lafayette, localizado na avenida João Pessoa, em Porto Alegre | Foto: Vitória Silveira

O modelo de loja que vende peças usadas surgiu no Brasil no século XIX, fundado no Rio de Janeiro por um português chamado Belchior. Essa invenção ganhou força nos últimos anos. Um estudo divulgado pelo Google apontou que a pesquisa por roupas e itens de segunda mão na plataforma cresceu 572% no país, entre 2019 e 2022. Mas, afinal, como se explica o recente boom dos brechós?

Na cidade de Porto Alegre, dezenas de lojas de peças usadas se concentram ao longo da avenida João Pessoa. Uma delas, o brechó Lafayette, criado em 2019, conta com a curadoria de Ana Paula Otaran Ramos. Para a empresária do ramo de peças de segunda mão, o consumidor de brechó ganha mais do que bons preços, ele se alia a um estilo de vida que se preocupa com o consumo consciente. “Tu tens que ter já uma sensibilidade maior. Eu vejo como uma missão, um estilo de vida.”

“Brechó era um lugar às vezes escuro, com peças rasgadas, que ninguém queria. Associavam muito a energia de um ente querido, mas roupa não tem karma. Isso é mito”, Ana Paula Otaran Ramos, empresária

Ana Paula conta que o mercado de brechós era frequentemente alvo de tabus relacionados à sujeira e morte pelo preconceito popular a respeito da origem das roupas. “Brechó só tem roupa de gente morta” é uma frase comum associada ao modelo de empreendimento que quase todo consumidor ou dono de brechó já ouviu. “Brechó era um lugar às vezes escuro, com peças rasgadas, que ninguém queria. Associavam muito a energia de um ente querido, mas roupa não tem karma. Isso é mito”, esclarece Ana Paula.

O brechó Lafayette — cujo nome é inspirado nas galerias da Europa — ilustra o contrário desse estigma. O espaço é colorido, possui vários itens decorativos, brinquedos, quadros, bolsas e livros, que conferem o ar lúdico ao local. Como os demais brechós, o Lafayette vende, compra e troca peças. Ana Paula analisa que o diferencial é o cuidado da curadoria ao avaliar as roupas que são adquiridas. “A roupa tem que estar em condições higienizadas, não estar faltando botões nem desbotada. Tem que estar em condições de alguém dar continuidade e ser tão feliz quanto você foi com ela.”

Para a professora do curso de Design de Moda da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de Porto Alegre Madeleine Muller, a explicação para o crescimento da busca por brechós é uma mistura entre oportunidade, necessidade e conveniência. “Existem pesquisas avaliativas desse período indicando que 80% desse aumento foi por questões econômicas, afinal, muita gente ficou desempregada ou fechou seu negócio e precisou encontrar alternativas mais acessíveis para se vestir”, afirma Madeleine, que é especialista em moda e sustentabilidade. “As outras 20% aderiram ao brechó pelo consumo consciente. Pessoas que entenderam que já possuíam roupas suficientes e apenas queriam garimpar peças diferentes, prolongando seu tempo de uso, já que as peças de segunda mão, por já terem consumido recursos, precisam ter seu uso prolongado, entendendo a diferença entre preço e valor.”

A especialista ainda alerta para o entendimento do que é o consumo consciente. “Não adianta substituir um tipo de compra em excesso por outro, apenas porque este causa menor impacto. As compras devem ser feitas quando realmente forem necessárias, não só porque está barato, do contrário continuará o comportamento compulsivo.” Madeleine conclui que encher o guarda-roupa com roupas que sequer precisamos está longe de ser um consumo consciente.

Segundo um levantamento publicado pela Global Fashion Agenda em 2020, a indústria da moda é a segunda que mais polui no mundo, atrás somente da indústria petrolífera. É estimado que mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartados em anos recentes no planeta Terra.

“Na pandemia, com a aceleração da digitalização, pipocaram brechós virtuais por todos os lados. Boa curadoria e entendimento de que é também um modelo de negócios com impacto positivo fez com que evoluísse e atraísse os mais jovens. Modernos e descolados, viram nos brechós uma questão de personalização e exclusividade, uma forma de se vestir diferente, com peças que ninguém mais tem, por preços muito mais em conta”, considera Madeleine.

Tendência ou novo hábito?

O movimento que começou nas ruas foi também para o mundo virtual. É cada vez mais recorrente a produção de vídeos e conteúdos digitais sobre brechós nas redes sociais. No TikTok, é possível encontrar um vasto material principalmente de jovens mulheres que compartilham vídeos ao garimpar e avaliar brechós pelo Brasil, atraindo milhares de visualizações. O conteúdo que virou tendência na rede social é associado a um modo de ostentar estilo através da moda vintage.

“Comprar em brechó é dar uma segunda chance a uma peça de roupa que está parada”, Laís Feldens, analista de marketing

A analista de marketing Laís Feldens, de 24 anos, começou a consumir peças de brechó em 2019, quando criou o Second Chances — brechó do segmento online — com a finalidade de desapegar de roupas que estavam paradas no armário. Em 2022, Laís passou a criar conteúdo para as redes sociais, principalmente no TikTok, onde reúne quase 20 mil seguidores, compartilhando momentos de sua rotina. Os vídeos mais produzidos em suas redes são visitando brechós em Porto Alegre e oferecendo dicas de garimpo. “Comprar em brechó é dar uma segunda chance a uma peça de roupa que está parada”, diz.

Laís conta que frequenta brechós pela possibilidade de encontrar peças exclusivas e selecionadas, como roupas que eram tendência nos anos 1990. Além disso, ela é movida pela questão da sustentabilidade, prática que já é inserida em outros setores de sua vida. “É uma garantia de não estar colaborando com marcas que usam trabalho escravo, por exemplo”, alerta a analista, que deixou de comprar em fast fashion desde que conheceu o mercado de brechós.

Ao buscar a palavra-chave “brechós”, no TikTok, surgem diversos vídeos com milhares de visualizações. Reprodução: TikTok

Se houve uma época em que as fast fashion eram tendência no mercado da moda, essa realidade fica cada vez mais distante. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Boston Consulting Group (BCG) e o Enjoei — empresa brasileira de comércio eletrônico que promove o consumo colaborativo — , o mercado de brechós deve ultrapassar o valor do modelo fast fashion até 2030, crescendo de 15% a 20% nos próximos cinco anos.

A contadora Caroline Ferraz, de 23 anos, passou a comprar artigos de segunda mão no último ano, quando começou a trabalhar na capital gaúcha. “O que me atrai em um brechó são os preços acessíveis para roupas que estão em ótimo estado. Já comprei roupas de marca por R$20 e, muitas vezes, consigo comprar ainda com etiqueta.”

Caroline é mais uma das consumidoras de itens usados que deixou de comprar em lojas de departamento após frequentar brechós. “O melhor investimento que já fiz foi em uma calça da Renner com etiqueta, que paguei R$29,90 no brechó, mas na loja estava R$159.”

Atualmente, as redes sociais indicam uma tendência na criação de conteúdo digital sobre brechós. Já a vida real aponta uma verdadeira mudança de hábito a quem já era consciente sobre a causa sustentável e também a quem passou a ter consciência após consumir as peças de segunda mão.

Entrando no ritmo

Até mesmo varejistas estão fazendo suas apostas no setor de moda sustentável. Em 2020, a Arezzo&Co comprou cerca de 75% da Troc, startup de moda circular, que compra e vende peças de luxo. Em 2021, a Lojas Renner comprou a Repassa, maior brechó online do país. A Riachuelo, por sua vez, anunciou em 2021 um serviço de aluguel de roupas, em parceria com a empresa Clorent.

Outras empresas nacionais e internacionais têm estabelecido publicamente a sustentabilidade como um de seus compromissos. Esse movimento, que ganhou ritmo principalmente após a pandemia, mostra que o sustentável deixou de pertencer a um segmento específico no mercado. Ameaçadas pelo novo modo de empreender, as grandes empresas também seguem a nova tendência, que não se aplica propriamente à moda, mas ao comportamento.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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