Moradora caminha pelo Quilombo Conceição do Igarapé do Lago do Maraca, localizado entre os municípios de Mazagão e Laranjal do Jari/AP | Foto: Anderson Menezes/Amazônia Real

INCLUSÃO

O avanço histórico de um povo resistente

Divulgados em julho de 2023 pelo IBGE, dados essenciais dos povos remanescentes de quilombos demonstram parte de uma persistência por garantias que vai além da justiça e torna-se questão de humanidade

Marcelo Pires
Cotidiano Incomum
Published in
6 min readSep 6, 2023

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Pela primeira vez na história, os povos quilombolas constam no Censo, que foi divulgado no dia 27 de julho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estudo, feito durante o último ano, traz diferentes informações sobre essa população, como número total e condições em que vivem, foi comemorado tanto pelos quilombolas quanto por Cimar Azeredo, presidente em exercício da entidade, que se manifestou publicamente durante a cerimônia de lançamento. De acordo com os dados da pesquisa, os quilombolas representam mais de 1,32 milhões de brasileiros, que até então estavam invisibilizados nas estatísticas.

Esse avanço reforça a necessidade de atribuir mais direitos à essa população, com o intuito não só de contemplá-la, mas também tornar possível que sua história de permanência seja conhecida por aqueles que residem na mesma cidade mas muitas vezes não sabem da existência ou significado dos quilombos. Como é o caso da estudante de pedagogia Maria Eduarda de Albuquerque, moradora de Porto Alegre, que passa todos os dias em frente a um quilombo quando vai à faculdade e mesmo assim não sabe ao certo o que ele representa.

Moradores do Quilombo Ivaporunduva, no Vale do Ribeira/SP, levando mantimentos a suas casas | Foto: Mídia NINJA

Os quilombos e seus povos remanescentes

Na história, os quilombos foram comunidades de africanos que fugiram da escravidão e ali estiveram em liberdade, produzindo o que necessitavam para viver e resgatando tradições culturais e religiosas de seus antepassados. Já nos dias atuais, os povos remanescentes desses locais, reconhecidos como quilombolas, estão presentes em todo território brasileiro, havendo aqueles que permanecem dentro dos centros urbanos e outros que residem em locais mais afastados.

Em estimativa feita pelo IBGE a partir de dados do novo Censo, foram mapeadas aproximadamente 5.972 localidades quilombolas no brasil, sendo 404 territórios reconhecidos, 2.308 denominados agrupamentos e 3.260 identificados como outras localidades. Aqueles pertencentes ao último grupo possuem seus domicílios com distâncias significativas entre si, superando o critério de 50 metros.

Contudo, todas as localidades quilombolas sofrem com a invisibilização histórica e geográfica, que contribui para a incerteza da permanência dos moradores nos locais onde vivem. A Fundação Cultural Palmares, instituição federal responsável por promover a afro-brasilidade, está à frente dos processos que certificam esses espaços. Criada em 1988, a entidade passou nos últimos seis anos por três diferentes governos, que contribuíram para seu sucateamento.

O Gabinete de Transição do governo atual visitou a Fundação Palmares em novembro de 2022, e as informações passadas para a imprensa foram de que a instituição foi uma das que teve os maiores cortes de orçamento no governo Bolsonaro. Com a troca de presidente em 2023, maiores incentivos governamentais foram atribuídos à instituição, possibilitando a certificação, apenas neste ano, de 28 quilombos, conforme dados divulgados pelo Ministério da Cultura. A certificação permite à população residente de quilombos ter maior certeza de permanência em suas casas, porém, não assegura que haja saneamento básico, coleta de lixo e outros serviços para essas comunidades, trazendo a necessidade de mais políticas públicas que as contemplem.

Uma Porto Alegre quilombola

Na capital gaúcha, existem diferentes povos remanescentes de quilombos, que integram o espaço urbano e ao mesmo tempo resgatam fatores históricos e culturais de seus ancestrais. Em novembro de 2021, foi lançado o Atlas da presença quilombola em Porto Alegre. Escrito por Cláudia Luísa Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt, o material foi dividido em dois volumes, que contém conhecimentos populares e acadêmicos sobre o tema. Nele, constam nove quilombos porto-alegrenses, como o da Família Silva, primeiro quilombo urbano do país, certificado em 2006. Ele fica localizado no meio de uma das zonas mais ricas da cidade, entre os bairros Bela Vista e Três Figueiras.

Área do quilombo da Família Fidélix, localizado entre os bairros Azenha e Cidade Baixa, em Porto Alegre/RS | Foto: Incra

Já o Quilombo Kédi, por exemplo, fica muito próximo ao Silva, mas não está incluso no atlas, pois teve sua certificação atribuída pela Fundação Cultural Palmares somente em 22 de março de 2023, aproximadamente um ano e meio após a publicação do livro. Seu território fica na parte nobre da Zona Norte de Porto Alegre, onde diferentes empreendimentos estão sendo construídos. O nome, inclusive, é uma referência à atividade do carregador de tacos de golfe, chamado de caddie, já que foram os primeiros moradores do quilombo que ajudaram a construir o Country Club Porto Alegre, localizado ao lado do espaço quilombola. Para a comunidade, a certificação, que foi uma das primeiras do atual governo federal, representa uma maior certeza de permanência no local.

As lideranças do Quilombo Kédi, no entanto, não estão concedendo entrevistas, porque, segundo eles, o momento atual é de discussão junto à comunidade para entender qual a visibilidade desejada, já que a situação ainda é sensível para os moradores. Como existe especulação imobiliária nas redondezas do quilombo, muitos ainda sentem-se pressionados e com medo.

Uma quilombola que preferiu não ser identificada, compartilhou sua insatisfação em relação aos prédios vizinhos à sua moradia: “Eu moro há 48 anos aqui e estamos sendo espremidos. Estão trancando e tirando nosso esgoto, por conta das novas construções. Também estão querendo fechar as passagens das nossas janelas e portas, e temos buscado ajuda pois estamos desesperados”, contou a moradora do local, onde hoje moram mais de 800 pessoas.

Direitos que vão além da autodenominação

Antes mesmo da certificação, uma comunidade pode se autodenominar um quilombo por meio do entendimento da história de seus povos. Porém, segundo Adriana Santos, coordenadora de Direitos e Promoção de Igualdade Racial da Prefeitura de Porto Alegre, a certificação atribuída pela Fundação Cultural Palmares traz maiores benefícios, pois confirma juridicamente o pertencimento ao espaço que ocupam. Além disso, segundo a coordenadora, o auxílio governamental, tanto de mantimentos quanto de prosseguimento de projetos futuros, torna-se exclusivo daqueles que são certificados, diferentemente do que acontece com povos autodenominados. Esses, mesmo possuindo laços ancestrais, acabam não tendo comprovação Judicial de pertencerem a um quilombo.

“Muitos quilombolas têm medo de chegar perto de prédios espelhados”,
Júlia Costa, estudante de Direito que atua no Quilombo Kédi

No entanto, a certificação atribuída pela fundação representa somente um dos processos necessários para a permanência dos povos em suas terras. A partir do momento em que o documento é publicado, um processo deve ser aberto pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para que o espaço seja averiguado, medido e contabilizado. Só depois disso é que os moradores têm garantia de não serem mais retirados de suas casas.

O Quilombo da Família Silva, por exemplo, possui hoje um processo em aberto pela instituição governamental, pois o estudo já foi iniciado, porém parte de suas terras está com a averiguação pendente. O mesmo ocorre com os demais quilombos porto-alegrenses.

Integrantes do Quilombo Vila Nova, em Biritinga/BA, participam de associação comunitária para plantio de alimentos | Foto: Ministério do Desenvolvimento Social

Povos remanescentes de quilombos trabalham, estudam e ocupam espaços na sociedade. O público em geral, no entanto, ainda tem pouco conhecimento sobre essas comunidades e por isso se torna cada vez mais necessário sua visibilidade. Até mesmo quem pertence a elas às vezes não tem conhecimento de seus direitos. “Muitos quilombolas têm medo de chegar perto de prédios espelhados e, quando são chamados para audiências, por exemplo, acham até mesmo que podem ser presos”, conta Júlia Costa, estudante de Direito que atua dentro do Quilombo Kédi acompanhando os moradores em audiências.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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Marcelo Pires
Cotidiano Incomum

Estudante de Jornalismo na UFRGS e fotógrafo profissional | @pormarcelo