ELITIZAÇÃO

O “clube do povo” deixou de ser do povo?

Brenda Trindade
Cotidiano Incomum
Published in
5 min readSep 6, 2023

--

Como o Sport Club Internacional tem gerenciado o seu público e como isso impacta na vida do torcedor de baixa renda

Divulgação/Internacional

Conhecido popularmente como o “clube do povo”, o Internacional se consolidou no Rio Grande do Sul como o time para todos nos anos 1940. Naquela época, o clube tinha um dos seus mais famosos grupos de jogadores, intitulado de “rolo compressor”, que conquistou diversos títulos com jogadores negros em campo, algo que era incomum e malvisto. Com as vitórias, diversas ações por parte do clube levaram o público de menor poder aquisitivo ao estádio. Um exemplo foi a criação do espaço chamado de “Coréia”, no antigo Beira-Rio, onde os torcedores tinham acesso a ingressos mais baratos.

Já a realidade do atual Beira-Rio e de outros tantos estádios brasileiros é muito diferente do que no passado. É o que indica a Pesquisa CNN/Itatiaia/Quaest, realizada entre março e abril de 2023 pelos veículos de comunicação CNN, Itatiaia e a empresa de pesquisas Quaest, que teve como objetivo compreender as experiências e hábitos dos torcedores brasileiros. Entre os entrevistados que recebem até dois salários mínimos, apenas 15% frequentam os estádios, enquanto para os que recebem acima de cinco salários mínimos a frequência sobe para 30%, evidenciando que o fator econômico é relevante para o acesso dos torcedores aos jogos.

Hoje a mensalidade é alta, o ingresso é alto, o entorno é caro.”, Nathan Barcellos, torcedor do Internacional

Nathan Barcellos da Silva, torcedor colorado que vai com frequêcia aos jogos e é funcionário de um dos bares mais conhecidos entre antigos e jovens torcedores em frente ao estádio, observa que o Beira-Rio dos dias atuais está elitizado e que o pobre não tem mais acesso ao clube como tinha antes. “O estádio era rústico, tinha os ‘negão raiz’ mesmo. Tu via que era povão. Hoje a mensalidade é alta, o ingresso é alto, o entorno é caro.” Nathan diz que percebe uma divisão interna no clube entre os que querem tornar o Internacional uma empresa e os que conviveram com o antigo estádio e lutam pela volta das massas populares.

Arenização

O antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Arlei Sander Damo desenvolveu uma pesquisa que conclui que o afastamento das classes populares do estádio Beira-Rio teve como motivo a transformação dos estádios no fenômeno denominado de arenização O termo foi criado a partir da palavra arena, nome que se dá para muitos dos novos estádios criados em um formato específico, inspirado nos anfiteatros romanos.

Esse modelo foi pensado a partir dos estádios europeus, que prezam por conforto e segurança. Também conhecido como “Padrão Fifa”, esse tipo de estrutura chegou ao Brasil em 2014 para a Copa do Mundo realizada no país naquele ano. As obras adicionaram cadeiras numeradas para cada torcedor em todos os novos estádios, diminuindo a capacidade de público. Foram colocados também sistemas amplos de câmeras por toda a extensão dos estádios para dar maior segurança, e a estrutura como um todo foi modernizada. Ou seja, esse fenômeno não atingiu somente o Internacional.

As consequências dessa série de mudanças foi o encarecimento dos ingressos e a busca por um perfil de torcedor mercadologicamente mais interessante para os clubes que atendesse as expectativas de consumo dentro dos estádios. “O que aconteceu com o futebol não é muito diferente do que aconteceu com os cinemas nos anos 80. Atualmente os cinemas estão localizados dentro de shoppings e são frequentados em sua maioria por pessoas das classes altas”, diz o pesquisador.

O atual Beira-Rio comporta 50 mil pessoas, enquanto no antigo, antes das obras de 2014, cabiam aproximadamente 80 mil. No lugar da Geral, espaço destinado para as classes mais pobres e onde havia somente arquibancadas de concreto, hoje tem fileiras de cadeiras, e os ingressos tornaram-se mais caros: chegam a R$ 100,00, nas áreas livres, e o mais barato custa R$ 40,00. Mas esses valem apenas para a entrada nos portões 3 e 7, onde ficam as torcidas organizadas.

E as soluções?

O vice-diretor de relacionamento social do Internacional, Cauê Vieira, conta que o clube vem pensando em como trazer de volta os torcedores de baixa renda, que ele admite que foram afastados do estádio após sua obra. “O clube tem uma modalidade associativa que é a Academia do Povo”, destaca. De acordo com ele, nesse formato, o valor para se associar e para frequentar os jogos é mais acessível. De fato em 2017 o clube criou essa modalidade de associação que, segundo a gestão da época, comandada por Marcelo Medeiros, teria como objetivo trazer de volta torcedores que não frequentavam mais o estádio.

Essa modalidade tem um valor de R$ 10,00 de mensalidade, e os ingressos dos jogos para esses sócios custam o mesmo preço. De acordo com o site do Inter, pode se associar por esse formato quem recebe até dois salários mínimos, quem está no Cadastro Único do Governo Federal, estudantes de escola pública e profissionais autônomos. O clube exige os documentos de comprovação dessas condições e dá outras vantagens para esses associados, como desconto nos produtos oficiais e em atividades oferecidas.

O problema é que essa modalidade associativa não é muito divulgada. Luísa Lisboa Moura é uma torcedora que só começou a frequentar o estádio após se associar, no início de 2023, pela Academia do Povo: “Conheci através da minha amiga que estuda comigo. Por parte do clube, nunca tinha ouvido falar, achava que era bem caro e, desde fevereiro, quando me associei, não vi divulgação e nem propaganda sobre a modalidade”.

Recentemente foi lançada uma nova vantagem associativa: jovens de 12 a 18 anos e idosos acima dos 80 pagam apenas 50% do valor do ingresso. Esses projetos, de acordo com o vice-diretor, poderiam ser mais divulgados. Ele explica que o clube tem colocado propagandas dessas modalidades mais baratas espalhadas pelo estádio e desenvolveu, junto com a prefeitura, um projeto de visitas às escolas públicas para divulgar a Academia do Povo. No início de 2023, o Inter divulgou para imprensa que tinha 105.688 sócios registrados, mas que a inadimplência era de 20,6%, o que mostra que a situação financeira realmente é um fator que tem afastado os torcedores do estádio.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo da UFRGS

--

--