CULTURA

O som da oportunidade

Projetos sociais de Porto Alegre transformam a vida de jovens e crianças através da música

Giovana Ramisch de Azevedo
Cotidiano Incomum

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Banda Lobos de Vila formada por integrantes de projeto social da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre | Foto: Divulgação

“Quem costuma vir de onde eu sou, às vezes não tem motivos pra seguir”, é o que diz a música “Levanta e Anda”, de Emicida, com participação de Rael da Rima. Retratando a realidade de quem vem da periferia e enfrenta as dificuldades da rotina todos os dias, a música defende que pessoas excluídas da sociedade são desestimuladas a ascender socialmente e mudar sua realidade.

O mesmo faz a Associação Amigos Casa da Música (Aacamus), localizada na região central de Porto Alegre. Um projeto que começou a funcionar em 2019, sem fins lucrativos, ensina música a crianças e jovens estudantes de escola pública de 6 a 16 anos. Atualmente, atende mais de 200 alunos de toda Porto Alegre e Região Metropolitana.

“Depois de entrar no projeto, tudo começou a mudar. Eu tinha muita dificuldade em matemática na escola e minhas notas começaram a aumentar muito rápido”, Rogério Júnior, aluno do projeto Aacamus

A presidente, Angela Diel, é cantora-lírica, cofundadora da Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors) e fundadora da Casa da Música — o complexo onde as crianças da Aacamus fazem as aulas. Foi analisando a falta de incentivo à musicalização nas escolas do bairro Floresta, onde fica o complexo, que Angela teve a ideia de divulgar a Casa na região. Com professores, ela apresentava instrumentos aos alunos para incentivá-los a aprender música. A demanda por aulas gratuitas surgiu e é grande até hoje.

“Eu tenho muita coisa da cidadania e de comunidade, isso a gente traz lá do interior já”, diz a cantora, que nasceu em Lajeado e se mudou para estudar música na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu projeto já deu muitos frutos. O objetivo era dar acesso às pessoas aos instrumentos, ensinar os jovens a cantar e também proporcionar conhecimento para que elas pudessem seguir no ramo profissionalmente. “Hoje nós já temos uma menina na Uergs [Universidade do Estado do Rio Grande do Sul] e três pessoas que entraram no vestibular da UFRGS, passaram na prova específica”, diz.

Um dos alunos que está seguindo no caminho musical é Rogério Santos Antunes Júnior, de 21 anos, um aprendiz muito dedicado que está no projeto desde o início. O jovem dá tanta importância às aulas que até lembra do dia em que começou. “Estou na Aacamus há quatro anos, desde que estreou o projeto, dia 28 de fevereiro de 2019”, assegura Rogério.

A simbiose entre a música e as pessoas

Rogério, que conheceu a Aacamus em um momento de dificuldades na sua vida, hoje aguarda ser chamado para tocar contrabaixo profissionalmente na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), pois foi aprovado no concurso. O contato com a música provocou uma grande mudança na vida do jovem instrumentista, ajudando no seu lado emocional e também no seu desempenho escolar. “Depois de entrar no projeto, tudo começou a mudar. Eu tinha muita dificuldade em matemática na escola e minhas notas começaram a aumentar muito rápido”, revela o estudante, que chegou a ser questionado pelo professor, na época, se estava fazendo algum tipo de curso de matemática fora da escola.

“[A música] te ensina a ter responsabilidades, a ter foco, é onde tu aprende a trabalhar em grupo”, Stephanie da Silva, ex-integrante da OrquestraVilla Lobos

O mestre em história pela UFRGS Felipe Bohrer afirma que a cultura é um campo de tensão, que está relacionada às reivindicações em uma sociedade historicamente desigual. “A cultura é uma ferramenta para determinar e romper fronteiras sociais, econômicas e políticas”, diz Felipe, destacando que na arte os sujeitos têm identidades “plurais”. O autor da dissertação “A música na cadência da história: raça, classe e cultura em Porto Alegre no pós-abolição”, publicada em 2014, também diz que a música serve para, além das formações identitárias, dar visibilidade social aos sujeitos excluídos. Ela representa, para o pesquisador, também, lazer e trabalho. Sendo assim, para ele, que hoje faz doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), a música faz as pessoas e as pessoas fazem a música.

Quem também destaca o poder dos instrumentos é a cantora Stephanie Soeiro da Silva, de 25 anos.“[A música] te ensina a ter responsabilidades, a ter foco, é onde tu aprende a trabalhar em grupo”, diz. Stephanie é da Vila Mapa, localizada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, e sempre estudou na Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa Lobos. Na instituição, a professora Cecília Rheingantz Silveira iniciou, em 1992, um projeto para ensinar as crianças a tocar flauta doce no turno inverso das aulas. Stephanie foi uma delas.

O projeto cresceu, e foi criada a Orquestra Villa Lobos (OVL), que faz sucesso na cidade. Todos os alunos recebem aulas de graça com profissionais. Alguns dos professores, inclusive, começaram a tocar no projeto da professora Cecília. Nem na pandemia as aulas de música pararam. Na ocasião, eles receberam ajuda financeira de admiradores para se manterem firmes.

Stephanie entrou com 8 anos no projeto e, aos 13, já estava fazendo parte da Orquestra, na qual somente os alunos mais avançados em teoria musical podem participar. Desde pequena, ela gosta de arte e de música, principalmente de Michael Jackson. O projeto da escola foi uma maneira de aprimorar essa conexão. O apoio do pai também foi muito importante nesse processo. Ele participava ativamente da educação da filha e assistia a todas as suas apresentações.

A importância da família

O professor e coordenador pedagógico da Aacamus, Ricardo Alberto Chacón Casanova, de 40 anos, diz que a participação dos familiares é muito importante na formação do músico. “A família é parte fundamental no desenvolvimento da criança. Os professores marcam o caminho, e os alunos devem aproveitar a estrutura que têm”, diz.

Chacón deixou a Venezuela em 2019 para fazer doutorado em Práticas Interpretativas de Violino na UFRGS. Sua esposa e seus filhos vieram junto para Porto Alegre, onde o pesquisador encontrou o foco que precisava para seus estudos. Na Venezuela, o ensino de música é muito forte, pois faz parte do projeto pedagógico de todas as escolas. Mas Chacón preferiu se mudar para o Brasil, porque considera que seu país está passando por um momento muito difícil. “Não dá para comparar a vivência de lá com a experiência daqui”, diz ele, satisfeito com a escolha que fez.

Foi na Venezuela que o professor aprendeu a tocar violino. Depois, fez licenciatura em Música e mestrado em Inovação Educativa ainda em seu país. Ele afirma que sempre foi muito dedicado nos estudos e que se doa por inteiro em tudo o que se propõe a fazer. “Temos que dar o melhor da gente em qualquer campo”, diz, destacando que, junto com a dedicação, é necessário procurar a felicidade naquilo que se faz.

Stephanie também seguiu carreira e hoje sobrevive da música. Sua banda, Lobos de Vila, é composta apenas por ex-integrantes da OVL. Eles tocam samba, MPB e rock nacional. Ela diz que, após algumas mudanças na sua vida, encontrou as pessoas ideais, com a mesma vontade e seriedade que ela tem para “fazer dar certo”. “São pessoas que sabem trabalhar com as condições que têm pra fazer música de verdade. Nós vivemos disso.” Como diz Emicida, “o sonho te traz coisas que te ‘faz’ prosseguir. Então levanta e anda”.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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