POLÍTICA

Entre a câmera, o microfone e as ruas

Os protestos de junho de 2013 que abalaram o Brasil ainda rendem discussões sobre suas consequências, inclusive em relação à cobertura jornalística de manifestações

Lucas Fagundes
Cotidiano Incomum

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A cobertura jornalística de grandes manifestações é sempre um desafio jornalístico. Em 2013, as jornadas de junho foram o principal acontecimento do Brasil | Foto: freepik.com

Numa distante noite de outono, em 27 de março de 2013, centenas de manifestantes se reuniram em frente à Prefeitura de Porto Alegre. Iniciava-se um novo capítulo de mobilizações populares no Brasil. A pauta era contra o aumento da passagem de ônibus. No início dos anos anteriores, era comum haver mobilizações com essa reivindicação em diferentes cidades do país, mas dessa vez foi diferente. Depois de quatro manifestações em 15 dias e uma ação protocolada na justiça por vereadores do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), o aumento da tarifa na capital gaúcha foi suspenso pela justiça no dia 05 de abril.

Com isso, os protestos se espalharam pelo Brasil e culminaram em junho, quando a ação violenta da polícia deixou centenas de manifestantes feridos. Os protestos que começaram por conta do aumento da passagem de ônibus já haviam se transformado, e as reivindicações se ampliaram. Os gastos com a Copa do Mundo de 2014 e a corrupção na política passaram a ser algumas das novas pautas.

O que ocorreu naquele período impactou não só a vida política do Brasil, mas muitas outras áreas, entre elas, o jornalismo. Para Marcelo Chemale, que atuava como repórter do SBT-RS durante as manifestações, o principal legado foi a experiência: “Do ponto de vista da reportagem de rua, 2013 e 2014 foram os momentos mais fortes que um repórter pôde viver no Brasil, por conta daquela ebulição social”.

A imprensa e os manifestantes

A ‘ebulição social’ trouxe à tona uma tendência na cobertura jornalística de grandes manifestações: as redes sociais passaram a ser os principais canais de informação e as mídias alternativas se consolidaram nas ruas. O deputado estadual Matheus Gomes (Psol), organizador do Bloco de Lutas pelo Transporte Público e uma das lideranças de junho de 2013 em Porto Alegre, afirma que a cobertura jornalística das manifestações era uma função democrática de extrema importância naquele momento: “Em junho começam a ganhar força em todo o Brasil veículos como a Mídia Ninja. Aqui em Porto Alegre tivemos o Catarse, Sul21… eram os veículos que procurávamos priorizar, porque a mídia corporativa tinha um programa político diferente do nosso.” Gomes se refere a alguns sites e veículos de imprensa com coberturas alternativas aos grandes meios de comunicação que ganharam muitos seguidores nas redes sociais durante aquele período.

Chemale, que segue até hoje na mídia tradicional, também destaca a importância da cobertura da imprensa durante os protestos, mas lembra que cada veículo tinha a sua linha editorial. “Sempre achei as causas das manifestações muito justas. O movimento surgiu muito em cima das redes sociais, mas acho que precisava de uma amplitude maior, veículos diversos, liberdade de imprensa, para ganhar legitimidade”.

Igor Natusch, editor do Jornal Sul21 em junho de 2013, relembra que a linha editorial do veículo era mais aceita pelos manifestantes: “O nosso primeiro grande pico de audiência foi o atropelamento dos ciclistas da Massa Crítica, em 2011. Depois, em 2012, houve o incidente com o tatu bola inflável que divulgava a Copa do Mundo no Brasil e noticiamos aquela repressão violenta por parte da Brigada Militar. O crescimento do Sul 21 aconteceu junto com a cobertura desses e de vários outros protestos nos anos anteriores à 2013. O público leitor nos identificou como um lugar que podia se informar com uma outra visão a respeito dessas movimentações e dos acontecimentos despertados por elas”.

“A mídia corporativa apresentou uma narrativa sobre os protestos e, através das redes sociais, a imprensa alternativa pautou outra linha, que no primeiro momento de junho foi fundamental para que as jornadas atingissem a casa de milhões de pessoas.”, Matheus Gomes, deputado estadual e um dos organizadores das jornadas de junho de 2013.

William Gonçalves, participante das jornadas de junho de 2013 em Barueri, São Paulo, lembra como recebeu as primeiras notícias das manifestações que se espalhavam pelo Brasil. “Demorou uns dias para repercutir onde eu morava. As notícias que vinham através dos grandes meios de comunicação enfatizavam a violência e os ‘baderneiros’, enquanto a Mídia Ninja, as mídias alternativas apresentavam os atores sociais, as reivindicações dessas manifestações.”

A disputa de narrativas sobre junho de 2013

Com o crescimento e a nacionalização das manifestações, as opiniões sobre o papel que a imprensa cumpriu se diversificam. Para Gomes, as mídias alternativas foram fundamentais na disputa de narrativa sobre o que acontecia nas ruas: “Em junho isso ficou muito evidente. A mídia corporativa apresentou uma narrativa sobre os protestos e, através das redes sociais, a imprensa alternativa pautou outra linha, que no primeiro momento de junho foi fundamental para que as jornadas atingissem a casa de milhões de pessoas. Sem isso, provavelmente o curso da história seria outro.”

O deputado considera que alguns jornalistas veicularam mentiras: “Muitos da grande imprensa atuaram numa lógica de criminalização do Bloco de Lutas. Afirmavam que organizávamos ações criminosas, violentas, com explosivos, mas isso foi levado à justiça e desmentido. Gostando ou não das opiniões deles, eles tinham o direito de fazer isso e nós de criticarmos. Hoje, tenho relação com muitos e vou manter essa postura”.

“Com o crescimento das manifestações, tudo aumentou, até os ataques à imprensa. Em junho, já tinha mais de 10 anos de profissão e pela primeira vez cobri uma notícia sem canopla e sem identificação do veículo que trabalhava. Me marcou muito.”, Marcelo Chemale, repórter do SBT-RS.

Chemale diz que, no início dos protestos, ele circulava livremente entre os manifestantes. “Tinha uma relação próxima com eles, inclusive porque fui parte dos caras pintadas, do ‘Fora, Collor’, me sentia à vontade naquela situação.” O cenário não seguiu o mesmo com o decorrer das manifestações. A massificação intensa das manifestações, além da truculência policial, inclusive com a imprensa, transformou as ruas num palco de guerra. A escolha das mídias tradicionais, muitas vezes, foi realizar a cobertura dos protestos em cima de prédios no centro de Porto Alegre, e o mesmo ocorreu em outras capitais.

A diferença das narrativas entre os veículos de imprensa criava um clima de rechaço dos manifestantes aos grandes meios de comunicação. Chemale relembra um fato inédito: “Com o crescimento das manifestações, tudo aumentou, desde as causas dos protestos até os ataques à imprensa. Em junho, já tinha mais de 10 anos de profissão e pela primeira vez cobri uma notícia sem canopla e sem identificação do veículo que trabalhava. Foi uma orientação de segurança da empresa e me marcou muito”. A canopla, a qual o jornalista se refere, é a peça com o logotipo da emissora, que envolve o microfone dos repórteres.

Desse ponto em diante, a cobertura jornalística das manifestações foi afetada pela violência. Natusch relembra que a tática adotada pelos repórteres do Sul 21 foi diferente. “Quando vimos a onda que arrastava todo mundo, ninguém tinha a menor ideia do que acontecia. Nesse momento, tive medo. Mesmo assim, fizemos a cobertura das jornadas de junho no meio da população, das pessoas que marchavam. Assumimos esse risco.”

De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), ao menos 113 ataques a jornalistas aconteceram nas jornadas de junho, sendo 70 deles intencionais. Nesse universo, 55 ataques foram protagonizados pelas forças de segurança, enquanto outros 15 foram perpetrados por manifestantes.

De 2013 a 2023: o que mudou?

Depois de viver a ‘experiência mais forte’ da vida, Chemale atesta que o jornalismo se fortaleceu: “Em junho vivi mais tensão do que na cobertura de operações policiais, mas aprendemos que sempre cumpriremos nosso dever com a sociedade, mesmo que com precauções para garantir nossa integridade”.

Partindo de um lugar diferente em 2013, Natusch afirma que para a cobertura jornalística esse período foi o mais valioso. “Aqueles dias foram de muito aprendizado. Tem muita coisa ainda para ser aprendida, coisas práticas, do dia a dia, sobre equipamentos, até mudanças grandes como profissional do jornalismo, da nossa atuação. Além disso, ainda há que se debater sobre o que foi Junho de 2013.”

Já Gonçalves, que participou daquele momento como manifestante, aponta que outras experiências após as jornadas de junho reafirmam a importância da cobertura jornalística de grandes manifestações. “O maior exemplo foi a cobertura feita pela imprensa e pelas mídias alternativas dos protestos em repúdio ao assassinato brutal do George Floyd, nos Estados Unidos. Com essa conexão, foi possível desencadear uma série de manifestações internacionais antirracistas. É também uma lição que o papel que a imprensa teve em junho deixou.”

Junho de 2013 foi para a cobertura jornalística no Brasil um marco. A consolidação das mídias alternativas, com o boom das redes sociais, trouxe à baila outras realidades para discutir o papel do jornalista no país. Pelos diferentes ângulos, seu impacto é inevitável.

Do surgimento de novos métodos de cobertura à experiência, da relação com os manifestantes até o aprofundamento das discussões teóricas sobre o que é ‘fazer jornalismo’, as jornadas de junho de 2013 deixaram ao Brasil um impacto que ainda será discutido por décadas.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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