ESPORTE

Torcer como um ato político

As torcidas gremistas que combatem a discriminação e o fascismo no futebol

João Vítor Debiasi
Cotidiano Incomum

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A Tribuna 77 foi criada em 2012 e nos últimos anos tem estado cada vez mais presente em manifestações e atos democráticos | Foto: Reprodução/Facebook da Tribuna

O ambiente esportivo sempre serviu como palco e reflexo da sociedade, absorvendo tanto seus aspectos positivos quanto negativos. Prova disso, é que o preconceito no futebol tem sido um assunto mais destacado nos últimos anos. De acordo com um estudo conduzido pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LBTQ+, o ano de 2022 registrou um aumento de 76% nos casos de LGBTfobia no Brasil. Recentemente, os casos de racismo envolvendo o jogador Vinícius Júnior, que ganharam repercussão mundial, trouxeram maior destaque para o debate contra o preconceito no esporte. O relatório anual do Observatório da Discriminação Racial no Futebol revelou um aumento de 40% nos casos de racismo no futebol brasileiro no ano passado.

O diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, afirma que desde a criação do projeto, em 2014, há um crescimento constante no número de denúncias de racismo, bem como de LGBTfobia e machismo, no futebol brasileiro. “Quando a gente passa a discutir, a gente passa a informar, a gente passa a conscientizar torcedores. E esse debate acaba sendo amplificado. Então, o aumento também é uma conscientização maior, é olhar para o futebol e perceber que muitos casos de racismo hoje são denunciados pelos próprios jogadores”, afirma Marcelo. Ele lembra que os jogadores usavam uma frase conhecida que evitava as denúncias: ”O que acontece em campo morre em campo”. “Hoje, o jogador de futebol está entendendo que não é assim”, diz.

Porém, o administrador também alerta que o aumento de denúncias não se deve apenas à conscientização de torcedores e jogadores. Hoje, a crescente defesa da liberdade de expressão muitas vezes se mistura com discursos de ódio e com a defesa de movimentos fascistas e nazistas. Nas arquibancadas da Europa, é possível enxergar um crescimento desses movimentos. “São coletivos de torcedores que estão em determinados espaços do estádio com saudações nazistas e fascistas. Esses torcedores não se escondem. Eles estão lá mostrando os seus rostos e, mais do que isso, eles estão lá divulgando essas células que existem na sociedade”, lembra Marcelo.

Entretanto, do outro lado da moeda, também se observa um crescimento de coletivos e torcidas organizadas que lutam contra o fascismo e todo tipo de preconceito. A Tribuna 77 é um exemplo disso. Criada em 2012, ainda no estádio Olímpico, a Tribuna 77 — nome dedicado ao ano do icônico título gaúcho de 1977 — começou a se consolidar na Arena do Grêmio, em Porto Alegre, estabelecendo sua presença na arquibancada superior norte. Com o objetivo de tornar o estádio um lugar mais acolhedor e inclusivo, a torcida luta pela redemocratização desses espaços e pela valorização do patrimônio social e cultural do clube. “A Tribuna nasceu de um coletivo de gremistas que frequentavam, na época, o Olímpico e começaram a sentir necessidade de montar um grupo com pensamentos similares com relação ao próprio torcer gremista. Trazendo questões mais políticas, como o antirracismo, pra dentro do Grêmio e fazendo ações dentro do que hoje a gente chama mais comumente de antifascismo”, conta Tiele Kawarlevski, mestre em Letras e integrante da Tribuna 77.

“A Tribuna quer um Grêmio que fale das coisas do mundo, um Grêmio que ninguém precisa explicar”, Tiele Kawarlevski, integrante da Tribuna

A torcida exalta em sua história desde jogadores e figuras negras célebres ligadas ao Grêmio, como o autor do hino do clube, Lupicínio Rodrigues, até a Coligay, torcida criada em 1977 por torcedores gays do Grêmio, durante o período da ditadura militar — algo inédito no futebol mundial. “A gente luta junto com várias pessoas para resgatar a memória e mostrar o quão grande foi tudo que fez a Coligay, na época em que fez sobretudo, né? Toda resistência que representou. Então é resgatar essas histórias e trazer elas pra rua pra que mais gente possa ver”, diz Tiele.

Com seus trapos e bandeiras, que não apenas carregam o slogan “Cultura de Grêmio”, mas também mensagens antifascistas e antirracistas, a Tribuna 77 leva esse debate para além das arquibancadas. A torcida promove atividades culturais, como a realização de saraus e a produção de arte de rua, que estão espalhadas por toda Porto Alegre. Além disso, também realiza ações sociais e campanhas nas redes sociais, aproximando o debate dos torcedores e atuando diretamente nas comunidades mais carentes que vivem nos arredores da Arena do Grêmio. “A ideia das artes de rua é propagar esse Grêmio ao alcance de todo mundo”, diz Tiele antes de citar a letra de uma canção de Douglas Germano, que canta sobre um samba que fale das coisas do mundo, um samba que ninguém precisa explicar. “A Tribuna quer um Grêmio que fale das coisas do mundo, um Grêmio que ninguém precisa explicar”.

Lupicínio Rodrigues era torcedor do Grêmio e compôs a canção que viria a se tornar o icônico hino do clube | Foto: Reprodução/Facebook da Tribuna

Esse movimento se expandiu, e outros grupos e coletivos começaram a atuar nessa área, como o Antifascistas do Grêmio e o Coletivo Elis Vive, uma torcida feminista e antifascista com o objetivo de tornar o estádio de futebol mais acolhedor para as mulheres. A torcedora gremista Catharina Xavier, de 23 anos, conta que desde pequena é apaixonada por futebol, mas nunca se sentiu acolhida ou levada a sério nesse ambiente. “Hoje em dia, sinto que houve melhorias. Esses movimentos e torcidas, as pessoas que valorizam a presença das mulheres nesses espaços, fazem toda a diferença”, afirma ela.

O torcedor André Kabbas, gremista e simpatizante da Geral — torcida organizada do tricolor gaúcho — diz que antigamente, quando alguém cometia racismo no estádio, era comum as pessoas em volta não fazerem nada, e que agora isso mudou. “Hoje eu enxergo um avanço geral, há repressão de expressões racistas e uma caminhada para um campo mais progressista. Porém, ainda existem muitos cantos homofóbicos, tanto na dupla Gre-Nal, como em todos os times do Brasil”.

A relação das torcidas antifascistas com os demais torcedores geralmente é tranquila. Existem casos de irritação por parte de pequenos grupos que consideram as lutas dos coletivos uma espécie de “mimimi” e que interpretam a luta política como meramente partidária. No entanto, Tiele considera isso uma minoria, apesar de ser uma minoria por vezes barulhenta. A maioria da torcida acha positivo e apoia as bandeiras que a Tribuna 77 levanta, embora às vezes de forma ainda tímida. Quanto à relação com o clube, é boa, e segundo Tiele, o Grêmio tem se mostrado cada vez mais receptivo a apontamentos de erros e sugestões de soluções. “Por sorte, hoje em dia, a gente também tem uma relação boa com o clube. Temos acesso e temos contato com pessoas que estão na direção, então conseguimos passar um pouquinho do que a gente gostaria”, afirma ela.

Os movimentos de conscientização têm evoluído nos últimos anos, e a dupla Gre-Nal tem estado na vanguarda desse processo. Ambos estão entre os 10 times parceiros do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. No entanto, a participação dos clubes nessas causas sociais depende, em grande parte, da boa vontade de seus dirigentes, sendo que alguns fazem mais e outros fazem menos. Desde a mudança de direção no comando do Grêmio, em novembro de 2022, o clube tem se envolvido muito mais em pautas sociais. A campanha #ClubeDeTodos, o maior reconhecimento e revisitação à história da Coligay e a adoção do ídolo gremista Tarciso “Flecha Negra” como novo mascote do clube, junto ao tradicional Mosqueteiro, são exemplos de uma inciativa de conscientização. Além disso, foram estabelecidos acordos com as torcidas para denunciar casos de discriminação e trabalhar para punir os responsáveis por tais crimes.

A Coligay esteve ativa entre 1977 e 1983 | Foto: Divulgação/Libretos

Futebol e política se misturam

O fato é que o futebol, embora em certos momentos de sua história tenha sido mais acessível à população, sempre foi um ambiente elitizado. Com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais inacessível para as camadas mais populares da sociedade. Esse problema é muito mais complexo e vai além das campanhas de marketing. Atualmente na Arena do Grêmio, o preço dos ingressos costuma variar entre 60 e 320 reais — dependendo do jogo e do setor do estádio –, e as camisetas oficiais, assim como da maior parte dos times brasileiros, custam em torno de R$349,90. “A gente não consegue dizer que um clube é popular, ou é de todos, ou é do povo, porque onde estão essas pessoas? Onde estão essas pessoas dentro do Conselho, dentro da gestão? Onde estão essas pessoas quando a gente pensa o valor que é o ingresso do futebol? O valor que é o preço de uma camisa? Então, assim, a gente tem muito para evoluir”, indaga Marcelo.

O diretor do Observatório também argumenta que não existe clube centenário que não tenha sido racista, já que em todos o acesso de pessoas negras foi proibido em algum momento. “A entrada de pessoas negras ocorreu por meio do talento e não de um debate sobre racismo. Nunca discutimos o racismo como estamos fazendo agora. Portanto, é fundamental que discutamos cada vez mais, e que os torcedores de seus próprios clubes, em vez de olhar para o rival, olhem para dentro de seus clubes e pensem: ‘Vou lutar pelo fim do racismo, da homofobia e do machismo aqui’”.

Tiele também observa que muitos torcedores ainda confundem a luta política com a luta partidária. “Isso faz com que as pessoas pensem que não tem que misturar política e futebol, quando na verdade política é muito mais ou vem muito antes dos partidos políticos e de ideologias partidárias.”, afirma a torcedora gremista. Ela ainda ressalta que toda escolha é política, inclusive a escolha de torcer para um clube. “Se eu, como mulher, decido fazer parte de uma torcida, é porque eu quero ocupar esse espaço de decisão política também. Eu quero ser parte disso. Quero trazer a minha representatividade para esse espaço, falar como eu me sinto sendo mulher indo para o estádio. Então tudo isso é política e, claro, querer silenciar isso também é um ato político”, indaga Tiele.

O esporte sempre esteve intimamente ligado à cultura e à política; é uma expressão das massas. Marcelo afirma que, na sociedade brasileira, onde o futebol é tão presente, é necessário entender que ele não é apenas um simples esporte, mas sim uma forma de expressão política. “O esporte não aliena, esporte é movimento político e, como movimento político, a gente precisa discutir política no futebol. Então dizem ‘ah, futebol e política não se misturam’, sempre se misturaram”.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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