OK OK OK

Ricardo do Nascimento
Cotidiano Sensível
2 min readJul 24, 2018
Reprodução/YouTube

Uma das coisas mais gratificantes pra um compositor é quando, conscientemente, consegue dar várias interpretações ao que escreve. Em “Ok Ok Ok”, Gil faz isso com maestria, tocando em temas delicados com a delicadeza que lhe é própria. O link para o clipe, para quem quiser assistir antes de continuar a leitura é:

Óbvios méritos artísticos à parte, percebemos na letra pelo menos três interpretações possíveis: uma leitura sobre prisão de Lula, uma crítica ao sistema capitalista ocidental e um protesto contra o racismo institucionalizado.

A primeira estrofe, além de fazer uma alusão ao desencantamento weberiano do mundo e sua burocratização (os ratos que roem o poder), cita multidões aos prantos, penúria, fúria, clamor e “seja nosso herói, resolva tudo”, no que pode ser considerado uma alusão à prisão de Lula. As duas últimas linhas desse trecho também podem se referir à cultura personalista brasileira na política, em que esse messianismo precisa sempre de um mito, um salvador da pátria para redimir a nação.

Na segunda estrofe, Gil alude à cultura do ódio que exige que ele se cale e responde aos que querem que ele se posicione em favor do pobre que ele espera que sua alma “seja nobre”. Que pode ser entendida também como uma alusão à nobreza enquanto classe, em oposição à burguesia. O que se confirma na estrofe seguinte, quando o próprio compositor crítica a escolha do termo, contextualizando-o à realidade escravocrata brasileira, em que uma cultura hipócrita de afeto para com as pessoas negras encobre o racismo estrutural e institucional.

Assim, Gil recusa-se a falar, enquanto músico e poeta, calando-se sobre “as certezas e os fins”, deslizando sobre “os alvos e as metas”, que podem ser considerados como referências a fetichização capitalista que leva a reificação do mundo de Adorno e Horkeheimer.

Por fim, Gil diz que falar sobre não faz sentido quando os fatos apontam para um caminho negativo, em que o diálogo é aceitação e os fatos exigem um basta. “Palavras dizem sim, os fatos dizem não”, expressa esse sentimento que se torna ainda mais evidente em uma das cenas do clipe em que um rapaz negro deixa cair vários cartazes em branco, que também parecem criticar a inocuidade dos protestos.

Gil, sempre direto quando se trata de crítica social, como em A novidade, Barracos e Queremos saber, talvez pela primeira vez escolheu não se pronunciar, convidando-nos à reflexão e à ação, sem troca de palavras vazias.

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Ricardo do Nascimento
Cotidiano Sensível

Sobretudo sobre a arte, sobre a ciência, sobre a filosofia sobre a religião.