O Lendário Encontro das Fênix

Matheus Pereira de Pinho
Cover Football
Published in
6 min readOct 7, 2021

A fênix. Um dos mitos mais famosos do mundo antigo, e continua sendo até hoje uma fonte de inspiração para milhões de pessoas ao redor do mundo. A ave lendária que, ao morrer, entrava em combustão espontânea e renascia de suas próprias cinzas são uma representação clara de como o ser humano pode, por assim dizer, voltar à vida, mesmo quando suas aflições e problemas parecem consumi-lo como fogo. Renascer ante o poder da morte da força de viver ou ser reavivado após a inatividade, a inércia e a melancolia.

Porém, talvez você esteja se perguntando o que uma lenda grega de centenas de anos atrás tem a ver com o futebol americano. Bem, para falar a verdade, tudo. Pelos últimos vinte anos, uma franquia e um homem em particular transformaram uma cidade, morta em suas próprias cinzas, queimada pelo poder das águas, em uma reluzente e resplandecente fênix. Como toda boa história de superação e reavivamento, essa também começa no pior momento possível: aqueles que antecedem a destruição.

“With the first pick…”

Voltemos até 2001. Naquele ano o San Diego Chargers tinha a primeira escolha geral do Draft, e precisando de um novo QB, a escolha pelo vice-campeão nacional e finalista do Heisman Trophy Michael Vick parecia óbvia. Contudo, os Bolts e o atleta não conseguiram chegar a um consenso sobre os detalhes do contrato. A solução encontrada por San Diego foi trocar sua escolha com o Atlanta Falcons. Descendo apenas quatro posições, os Chargers draftariam LaDainian Tomlinson, uma lenda da equipe. Com a primeira escolha da segunda rodada, apostaram suas fichas num jovem saindo de Purdue, seu nome era Drew Brees. Os anos ruins de Brees no começo de sua carreira levaram os Chargers a usar a primeira escolha geral de 2004 para selecionar Eli Manning, que fez questão de mostrar sua insatisfação. Os Giants então draftaram Philip Rivers e propuseram a troca entre os QBs. Brees, sabendo que seu emprego estava ameaçado, entrou na temporada 2004 precisando de ressurreição e ressurgimento. Foi neste ano que houve o primeiro voo da Fênix Negra.

2004 — O Primeiro Voo

Os Chargers decidiram manter Brees como titular visando evoluir o rookie Rivers. Foi nessas condições que o garoto de Purdue fez a melhor temporada de sua carreira até então. O bom desempenho fez ele manter a titularidade também no ano seguinte, e quando tudo parecia bem, aconteceu a segunda morte e combustão da Fênix. No último jogo da temporada o QB acaba sofrendo um fumble e tenta recuperá-lo. Uma pancada violenta no lance, porém, acabou lesionando o braço lançador do atleta. A lesão era tão séria que se imaginava que poderia encerrar a carreira de Brees. A sempre quente e calorosa California o fez arder em chamas e cinzas. Não por muito tempo…

Os Chargers decidiram por fazer de Philip Rivers o seu starter e ofereceram um contrato com valor baixo para Brees, que recusou e decidiu testar o mercado como free agent. Nick Saban, então head coach do Miami Dolphins queria muito a contratação do jogador. Quando tudo parecia se encaminhar para o casamento, a equipe médica de Miami estragou a cerimônia ao melhor estilo “fale agora ou cale-se para sempre”. Na avaliação médica pré-contratual eles cometeram um erro que mudaria para sempre a história dos Dolphins, do College Football e da NFL: recomendar que Brees não fosse contratado por entender que ele jamais voltaria a atuar em alto nível. Miami decidiu por contratar Daunte Culpepper, ex-Vikings e UCF Knights. Saban ficou extremamente insatisfeito com a decisão do front office dos Dolphins e deixou a equipe logo depois para assumir a Alabama Crimson Tide e estabelecer a maior dinastia da história do esporte universitário. A Fênix Negra continuava no mercado, esperando uma oportunidade. Foi aí que ele conheceu a Fênix Branca, não menos sofrida e precisando dele.

O encontro das Fênix

2004 também seria um ano difícil para o povo de New Orleans. O furacão Katrina devastou a cidade, matou muitas pessoas e desabrigou outras tantas. Famílias inteiras sentiram o poder das águas e dos ventos queimando e levando toda sua vida às cinzas. O Mercedes-Benz Superdome se tornou um enorme abrigo de refugiados e os Saints se tornaram um time cigano, mandando jogos em Baton Rouge e San Antonio. Uma franquia que foi sempre perdedora, perdia também um pouco de sua identidade. Um cenário que quase se tornou definitivo já que o contrato do time com o estádio na Louisiana chegava ao fim em poucos meses. A hipótese de abandonar New Orleans era real e grande. Foi sob esse cenário de caos e devastação que a cidade mais espiritualizada da Grande América teve sua ressurreição, que levou muito mais que três dias.

O casamento e a terceira morte da Fênix Negra

Se não houve matrimônio entre Brees e Saban em Miami, a lua de mel com Sean Payton durou mais de uma década. A química foi instantânea e Brees levou os Saints à final da NFC logo em seu primeiro ano, onde seriam derrotados pelo Chicago Bears, em um jogo fraco de Brees contra a defesa maravilhosa de Chicago. Seria esse outro indício de chamas pairando no ar?

A resposta viria estrondosa como uma trovoada, e Brees brilharia intensamente como o relâmpago que simboliza a franquia que o deixara ir embora. A cidade inundada pelas águas tristes movidas pela força do Katrina agora seria inundada com uma chuva torrencial de esperança e alegria.

Depois da tempestade vêm sempre a bonança.

Veio então o ano de 2009. A franquia mais perdedora da história da NFL engatinhava no que se refere a brigar por conquistas — e o vice-campeonato da NFC em 2006 foi um bom indício. Com um ataque fulminante a equipe de New Orleans começou a temporada com 13–0, o melhor recorde inicial da liga em quase 90 anos. Às três derrotas que se sucederam não impediram os Saints de ficar com a melhor campanha da Conferência Nacional e a vantagem de jogar os playoffs sempre em casa. O triunfo sobre o Arizona Cardinals colocou a equipe de volta na final da NFC, onde novamente cruzariam com um adversário vindo do Norte. Não qualquer adversário. Como no célebre poema de Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho havia uma pedra”, e essa não era qualquer pedra. Não era um daqueles minúsculos pedaços de rocha que entram no sapato, mas que saem facilmente quando você vira o calçado para baixo. Não, essa era uma verdadeira montanha a ser escalada. Essa pedra atendia pelo nome de Brett Favre, eternizado no Hall da Fama e considerado pela própria NFL um dos dez maiores quarterbacks de todos os tempos. Não só isso. Era uma estrela em fim de carreira, correndo atrás do seu segundo Super Bowl, o título que escapou pelos dedos contra o Denver Broncos de John Elway em 1997. Estamos falando de uma história lendária, e em toda lenda que se preze, o mocinho sempre vence, sempre se supera. Uma interceptação feita pelo defensive back Tracy Porter garantiu o empate e levou o jogo ao overtime, onde os Saints venceriam. New Orleans ia para o Super Bowl pela primeira vez. Seria em Miami, na casa dos Dolphins, o time que ousou dizer “não” a Drew Brees.

O adversário seria outra rocha monumental e colossal: o Indianapolis Colts de Peyton Manning, outro jogador eternizado em Canton e no Top 10 All-Time da Liga. Contudo, como já deu para notar, o universo conspirava a favor da Fênix Negra. Mais uma vez seria o contestado Tracy Porter que decidiria a partida. Pick six para dar números finais ao jogo, dar o título aos Saints, dar um sorriso ao sofrido povo da Louisiana e para colocar um jovem garoto texano no lugar mais alto do esporte americano. Mais que isso, para colocar Drew Brees para sempre no grupo seleto dos maiores jogadores de todos os tempos. Para colocar a Fênix Negra, depois de tantas mortes e renascimentos, eternamente no seu posto de lenda viva, e meus amigos, lendas vivas jamais morrem.

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