The Longest Yard

Matheus Pereira de Pinho
Cover Football
Published in
6 min readNov 16, 2021

O ano de 2000 raiou no horizonte cercado de expectativas e incertezas. Do tão falado “bug do milênio”, um problema tecnológico que supostamente faria os computadores do mundo regredirem cem anos na contagem da eternidade, passando pela temida profecia do Apocalipse do astrólogo Nostradamus, a virada do milênio era mais que uma nova página na história da humanidade — se tornou um momento lúdico, único e marcante. Se o ano 2000 tomou ares poéticos no momento que nasceu, um dos seus maiores eventos não poderia ser menos inesquecível.

A cidade de Atlanta vivia um de seus períodos mais dourados. Os Braves vinham do título da World Series em 1996, exatamente no mesmo ano onde o mundo virou seus olhos para a cidade que resplandece como a Fênix que embeleza sua bandeira azul vibrante. Coube ao Condado de Fulton a honra de sediar os Jogos Olímpicos. E na aurora dessa nova era, o Georgia Dome foi o palco de uma partida lendária.

The Greatest Show on Turf

Os Rams nasceram em Cleveland no longínquo 1936. Apesar do título da NFL em 1945, os carneiros decidiram ser o tempo de mudar. Que mudança! A franquia se pôs na estrada e rumou ao oeste visando se tornar o rosto da Costa do Pacífico quando o assunto era futebol americano profissional. Por quase cinco décadas, o time se manteve fiel a esse propósito. Em 1994, o cenário mudou. Os Rams se colocaram novamente na estrada e rumaram de volta ao centro da Grande América, para Saint Louis, no Missouri. É aí que nossa história começa de verdade.

É comum vermos jogadores decepcionados ao demorar para terem seus nomes chamados no Draft — e o dizer Aaron Rodgers em 2005. Contudo, em 1994 houve um garoto em particular que teve nem sequer essa experiência. Um quarterback desconhecido da Northern Iowa University esperou por uma ligação que não aconteceu. Seu nome era Kurt Warner. A primeira chance recebida na NFL foi no practice squad do Green Bay Packers, uma franquia que vivia um jejum de quase trinta anos, mas que tinha Brett Favre como signal caller. Infelizmente, Wisconsin não foi o lar de Warner por muito tempo, e para continuar perseguindo seu sonho de ser um QB de sucesso ele precisou fazer como os Rams e se colocar na estrada. O destino era a Europa.

O brilho de Kurt Warner na NFL Europe foi notável e ele teve uma nova chance na Terra do Tio Sam. Obviamente, como toda boa história que se preze, o menino que ousou botar o pé na estrada parará exatamente na equipe que realizou o mesmo. Warner foi contratado pelos Rams, para liderar um dos ataques mais formidáveis de todos os tempos. Um esquadrão tão imponente apelidado com as palavras no subtítulo desses parágrafos. Com absoluta justiça. O maior show dos gramados norte-americanos fez Saint Louis sonhar em ter aquilo que Los Angeles falhou em dar aos Rams: um Lombardi Trophy. Para isso ocorrer, entretanto, era preciso mais que dar show. Quis o universo, irônico e travesso, que a consagração dos garotos do Missouri viesse com um lance defensivo.

Faltavam menos de dois minutos para o final da partida e o placar estava igualado em dezesseis pontos. Quem tem Kurt Warner, tem tudo. O snap é feito na linha das 27 jardas do campo de defesa. E o quarterback que cruzou metade do planeta para ter sua sonhada chance lançou um míssil teleguiado que também pareceu cruzar a galáxia até cair nos braços de Isaac Bruce. Ele realiza a recepção próximo à linha de 40 jardas do campo de ataque, quebra tackles e corre para casa: 73 jardas, Rams em vantagem com 1:48 restantes. Steve McNair precisava de uma campanha milagrosa com um timeout à disposição e partindo de dentro da sua linha de 10 jardas. E para quem não lembra, milagres eram a especialidade desse time recém realocado. Era apenas a terceira temporada da franquia em Tennessee, a primeira com o nome de Titans e a segunda em Nashville. E se a nova alcunha referenciava os principais deuses gregos olimpianos, o primeiro jogo daquele playoff não poderia ter tido contornos mais apoteóticos e odisseicos. Os Titans receberam os Bills e venciam por 15–13 até a marca de 16 segundos do quarto período. Então, Steve Christie colocou Buffalo em vantagem com o que, naquela altura, parecia ser um game winning field goal. E já que estamos falando de mitologia grega, assim como Apolo era o deus das profecias, a franquia que representava o Olimpo na NFL também tinha seu profeta particular, que atendia pelo nome de Mike Keith, narrador da Titans Radio Network. Ele disse, em tradução livre: “Os Titans tem um milagre sobrando no que é uma temporada mágica até aqui? Se eles tiverem, precisam usar agora”. E eles usaram. Christie chutou o kickoff rasamente, permitindo a captura de Lorenzo Neal. E foi aí que um dos lances mais célebres da história do futebol americano aconteceu: Neal fez um handoff para Frank Wycheck, que no que lhe concerne, lançou lateralmente para Kevin Dyson. Dyson acelerou, contou com os bloqueios e colocou o estado do Tennessee em puro êxtase. Touchdown, Titans, para a vitória, para a consagração e para a eternidade. E é com este cenário em mente que os Estados Unidos assistiam Steve McNair com a última posse de bola do Super Bowl. A pergunta que pairava no ar era óbvia: havia algum novo milagre nas mangas dos garotos de Nashville?

Cabia à McNair marchar no campo. E foi exatamente o que ele fez. De first down em first down a esperança crescia na Cidade da Música e a apreensão era maior nos corações da torcida azul e dourada. E o exército marchante vestido em dois tons de azul viu seu general conseguir fugir de um sack ao melhor estilo Houdini. O placar mostrava 22 segundos sobrando de futebol americano na temporada de 1999. McNair precisava converter uma 3&5 na linha de 28 jardas do campo adversário, e de alguma forma, ainda carregar o time até a endzone. E logicamente, não é o melhor dos mundos quando os bloqueios de sua linha ofensiva falham. Dois defensores foram à caça como leões famintos atacando uma zebra indefesa na savana africana. Porém, dessa vez, a zebra foi mais ágil. O astro titã conseguiu escapar da pressão, se livrou do sack, e de alguma forma, lançou a bola com precisão de invejar os mais poderosos arqueiros deste planeta. O catch gerou uma primeira descida pro touchdown do empate. Com seis segundos no cronômetro, Tennessee pediu seu último timeout. O que parecia um mero sonho, um devaneio, uma miragem, um verdadeiro milagre, estava a ponto de se tornar realidade debaixo dos olhos de todos no Georgia Dome. E como o game clock na chamada do timeout, o mundo parou.

Steve McNair se alinha no shotgun com quatro recebedores abertos. Corrida, nessas condições, não era uma alternativa viável. Era preciso lançar na endzone. O snap é feito, o QB efetua a leitura, procura um alvo e lança. Kevin Dyson, aquele do Music City Miracle, faz a recepção na linha de cinco jardas e corre em direção ao paraíso pintado nas cores do rival. Quatro segundos restando, é agora ou nunca. Um defensor se aproxima para lhe tacklear. Seu nome era Mike Jones. E que tackle, senhores! Não foi apenas um tackle. Foi “O” tackle. Iniciado na linha de 3 jardas, não apenas impediu o avanço de Dyson; impediu também que ele se esticasse até o plano de gol. Por meia jarda, talvez até menos, os Rams eram os campeões do Super Bowl. Para sempre, Kurt Warner, era um campeão de Super Bowl. O maior show dos gramados sintéticos agora tinha uma nova alcunha, essa muito mais simples: The World Champions. E uma alcunha dessas, meus caros, ninguém ousa desrespeitar. Por uma noite, uma jarda se tornou um quilômetro. E a unidade de medida mais curta de um campo de futebol americano se transformava em uma distância estratosférica: a distância da jarda mais longa de todos os tempos.

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