O estranho mundo de quem já perdeu a mãe

Camila Freire
Coxia de Desconchavos
4 min readJul 10, 2015
Eu, minha mãe e Thaís em 91
Eu, minha mãe e Thaís em 91

Minha mãe morreu no dia 31 de dezembro de 2006, quando eu tinha 21 anos e minha irmã, 17. Não vou mentir pra você, foi uma merda. Sempre é. Todas as mães morrem um dia, se for pra seguir a ordem natural das coisas, mas a gente sempre espera que esse dia nunca chegue. Ou que seja com ela bem velhinha, de uma forma indolor, família toda reunida, Dona Canô style.

Pra gente não deu, paciência. O engraçado é que, no começo, você pensa que seus únicos problemas vão ser superar a dor e a saudade. Mas aí você percebe que as pessoas começam a agir de uma forma esquisita, e que agora existe um estigma que vai sempre te acompanhar.

Porque a verdade é: as pessoas não sabem o que fazer quando têm essa informação sobre você.

No começo vêm as mensagens de conforto, à medida em que todo mundo fica sabendo. Se vêm dos amigos mais próximos, principalmente daqueles que conviveram mais ou menos com a sua mãe, elas são legais, ajudam mesmo.

Galera te liga, vai na sua casa, conversa feito gente normal, e lembra o quanto sua mãe era o máximo. Obrigada de verdade a vocês.

Mas aí começa a esquisitice. Semi-conhecidos te param na rua pra perguntar detalhes da doença, da morte, do funeral, e completam com “nossa, você deve estar muito arrasada mesmo”.

Se você responde com um “não, mesmo, tô de boa”, eles fazem uma cara bem condescendente e arrematam “essa é uma dor que você nunca vai superar, perder a mãe marca a gente pra sempre”.

O que é bizarro especialmente vindo de alguém que nem perdeu a mãe.

E aí vem a galera do elogio. Eles vão te olhar com uma admiração que você não sabe mesmo de onde veio. Vão falar da sua coragem, da sua força, e vão dizer que no seu lugar, não saberiam o que fazer. Que não iriam conseguir sobreviver sem a mãe, que ela é tudo, etc etc.

Bom, eu amava muito a minha mãe, mas não é como se eu tivesse muita opção, né? Era continuar vivendo, ou morrer também, e eu não estive muito inclinada pela segunda escolha. E não precisa se sentir menos especial, se eu aguento, você também aguenta. Seres humanos são assim.

Pra deixar tudo bem pior, minha mãe morreu de uma doença autoimune rara e desconhecida de quase todo mundo: a esclerodermia. Em resumo, é quando a sua produção de colágeno fica descontrolada e se volta contra você, depositando o excesso na pele e nos órgãos internos.

Agora imagina eu explicando isso tudo pela milésima vez. Pois é.

Eu ainda fico meio aflita de encontrar gente nova, e esse assunto acabar aparecendo. A pessoa vai perguntando da sua vida, de onde você nasceu, como estão seus pais. Eu tento despistar ao máximo sem mentir, só falando do meu pai e da minha irmã, mas o inevitável sempre surge.

“E a sua mãe?”

“Morreu em 2006”

Cara, a pessoa se transforma. E você passa a ter muita vontade de ir embora. Ela diz que não sabia, pede desculpa, diz que sente muito por você. E fica nisso uns dez minutos, como se sua mãe tivesse morrido ontem.

Daí ela pergunta do que mesmo que ela morreu, e são mais vinte minutos de explicação. Eu sei que é compreensível que as pessoas fiquem assim quando elas mesmas não tiveram nenhuma perda grande na família.

Eu já fiz essas cenas quando era adolescente e um namorado disse que não tinha o pai desde a infância. Eu reagi mesmo foi à ideia de perder o meu próprio pai.

Querendo ou não, a gente que é órfão ou semi-órfão vira um lembrete ambulante aos outros de que os pais deles vão morrer também. Muita gente não lida bem com isso.

Eu me lembro de uma vez em que estava num café, numa mesa grande, com um monte de gente que eu não conhecia. Por coincidência sentamos juntos eu, um rapaz que tinha acabado de perder a mãe e uma menina que tinha perdido ambos os pais. Ficamos felizes de estar entre iguais, e começamos a conversar animadamente sobre as nossas experiências.

Até que fomos interrompidos por uma outra pessoa da mesa, reclamando que a nossa conversa estava muito “mórbida”, e que era pra a gente parar de ficar falando de morte. Como se a morte já não estivesse fazendo parte das nossas vidas.

Pra encerrar, ficam algumas sugestões de como agir com uma pessoa próxima que perdeu algum dos pais.

Não precisa relembrar que ela está muito triste, ela consegue sentir emoções sem você. Diga que ela ainda tem sorte de ter pai/mãe/irmãos/avós/filhos/cônjuge, e que ela ainda vai ter muitas alegrias por causa deles. Converse sobre as memórias felizes que você tem da pessoa que morreu.

Ofereça ajuda concreta, não esses “qualquer coisa me liga”, quando você sabe que a pessoa vai ser orgulhosa demais pra ligar.

Se já faz muito tempo da morte, e você ficou sabendo agora, fique na sua. Comente com um breve “sinto muito”, ou até “puxa, que merda”, mas pelo amor de todos os deuses do Olimpo, suspenda o drama.

E se foi você que perdeu alguém por agora, aproveite uma das poucas vantagens de se estar em luto: mande sinceramente a pessoa chata pra aquele lugar. E nem peça desculpas depois. Ela vai te entender um dia.

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