Na gaveta do congelador

Capítulo I — Afetos nem sempre são memórias, pelo contrário. Como diz o sábio, são marcas de carimbo!

Tuliosil
COZIDO FARTO

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“Você se lembra que costumava sempre ter gelo em seu congelador? Isso é uma coisa que me lembro bem, na sua casa nunca faltava gelo.”

Naquele momento, rememorar uma ideia vaga de possuir o que fosse, ainda mais algo tão efêmero quanto água em estado sólido, sequer passava pela minha cabeça. Minhas preocupações estavam em possuir aquele corpo que já fora menos frio.

Meu nome é Adriano e essa é a história de como é importante viver uma sensação na hora em que ela é proposta.

Naquele momento em que Denis falava comigo, jogado com a cabeça torta no travesseiro, eu mal ouvia suas palavras bobas sobre gelo. Eu pensava no que estava dando errado.

“Será que nunca mais vai voltar a ser como era antes?”, pensei em voz alta.

“Mas o que você quer que dê certo? Lembra que a gente combinou que não haveria algo novamente?”

Ele devia estar certo, não tinha nada que haver. Mas na cabeça da bailarina, não importa o torção no calcanhar, girar é só o que ela sabe fazer. No meu caso, pensar, prospectar e criar uma certa realidade ilusória, dessas bem bestas criadas para termos certa paz.

“Okay, mas precisa ficar me lembrando, de meia em meia hora, que só estamos juntos, novamente, porque nossa química é boa e nossos corpos se entendem melhor do que nós mesmos?”, eu podia dizer outra coisa?

“Adriano, você pensa demais!”

Nossa, será que você consegue criar uma fala que soe mais clichê do que essa? Dessa vez consegui pensar em voz baixa. Mas o som já tinha sumido completamente do quarto. Restava meu olhar perdido em um teto pixelado, enquanto tentava resgatar coisas velhas em um buraco chamado memória afetiva. Para o meu azar, faltaram as madeleines.

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“O som está muito alto aqui, vamos ali naquele quanto?”

“Nossa, você tirou as palavras da minha cabeça, vamos sim!”

Carlinhos então pegou Maria Fernanda pelo braço e levou para uma mesa no fundo da casa noturna vazia.

“Será que é certo fazermos o que estamos fazendo? Digo, nós dois somos amigos Dele. Claro que sou eu quem está traindo, ou melhor, nem traindo porque já liguei pra ele terminando. O coitado não entendeu nada, deve estar todo perdido, mas estamos traindo ele, não estamos?”

“Fê, você sabe muito bem que estávamos traindo a nós mesmo com toda aquela situação bizarra. Pensa, a gente se ama desde a primeira troca de olhar, você com essas mesmas galochas vinho, recém chegada no colégio.”

“Eu sei, eu sei, mas Carlos, não é justo a gente brincar com os sentimentos de nós três. E mais, tem aquela praga, não tem?”

“Praga? Que praga? Do que é que você está falando agora?”

“Ah, você sabe muito bem do que eu estou falando.”

“Prefiro que você seja mais clara, porque te juro, não estou sacando nada!”

“Então, quem trai uma vez, trai outra. E eu sei que agora, pelo jeito que começamos, vou acabar te traindo também, e não quero isso para nós, não é justo que depois de tanto tempo, a gente se perca novamente. Estou com medo.”

Carlinhos puxou Maria Fernanda mais para perto, alisou aquela cabeleira castanho claro, colou o lábio no canto encovado daquela boca deliciosa, que ele sempre desejou. Que ele imaginava beijar enquanto tomava algum vinho ruim em uma praça do interior.

“Não tem muito o que possamos fazer. E, sei lá, vamos brincar de Paulo Coelho e gritar juntos maktub. Se for para ser, seremos.”

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“Você só percebe que a língua está sendo usada de forma imprópria quando é tarde demais, e isso serve tanto pro idioma quanto para o beijo que você se nega a me dar, sabe disso, não sabe?”

“Renan, quer já parar com isso, velho! Você sabe que o que a gente tem é muito maior do que tudo isso, bicho! A gente tem uma conexão que vai além da linguagem e do corpo. Estamos criando a nossa língua através de nossa ausência de contato sexual!”

“Caralho, Edu, você não percebe que eu quero mais do que isso?”

“Passa o baseado?”

Edu começou a fumar pausadamente, mantendo a fumaça dentro da boca. Sempre tem aquela história de quanto mais tempo você passa com a fumaça, mais entorpecido fica. No caso, Eduardo só queria interromper o assunto. Esperava naquela pacificidade habitual por uma explosão de ideias desconexas por parte de Renan. Era isso que voltaria o clima gostoso de antes.

Renan, por outro lado, só pensava no quanto odiava aquilo tudo. Ficar perdendo tempo com o carinha magrelo abestalhado que ninguém gostava. Claro que a família sempre gosta, mas e quem mais?

Um carro da polícia passava acelerado, o trânsito era maciço ainda que fosse três horas da manhã. Estavam em uma das avenidas mais movimentadas da capital mais movimentada do país mais besta que poderia haver.

“Eu estava pensando aqui comigo, como que a gente aguenta ficar juntos ainda. Cara, você sabe que eu tenho um monte de amigos, que eu sou festeiro, que eu gosto de uma bagunça e olha só, estamos sentados em um monumento, fumando um baseado e perdendo as vistas em busca de estrelas que nem devem existir mais.”

“Velho, para com isso. Estamos aqui, não pelas estrelas, nem pelo baseado, nem por não podermos estar em outro local. Estamos aqui porque simplesmente estamos aqui. Quer ir para outro lugar? Vamos dar uma volta?”

“Ah, eu queria tomar um vinho agora, branco, bem mineral e gelado. Sei lá alguma coisa meio que da região central de Portugal. Como que é o nome mesmo?”

“Renan, esqueceu que, primeiro, eu não bebo mais e, segundo, quem entende desses rolês aqui é você?”

“Não, eu nunca me esqueço que você é um veado escroto de chato que só saber encher o saco!”

Sorriram um pro outro, Renan pegou o baseado e começou a fumar enquanto andavam em sentido ao carro. Sabia que iam terminar a noite como sempre, ele emputecido, tirando uma onda com a cara de Edu, e esse ia ficar mais fascinado ainda pela forma com ele sabia usar bem a língua.

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Muito raro é encontrar situação em que duas pessoas estejam verdadeiramente presentes. Dizem que o sexo é um desses momentos, quando o casal apaixonado, tornando-se um, finalmente é capaz de se escutar.

Estou presente em três histórias diferentes, mas repare, em nenhuma delas verdadeiramente estou. Ninguém está! Sexo? Bom, ainda tem muita história para contar.

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