Um menino chamado Emílio

Tuliosil
COZIDO FARTO
3 min readNov 8, 2014

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Fiquei por muito tempo com aquela cena na cabeça…

Tinha dado uma escapada para encontrar Daphne na frente do colégio dos meninos. Aquela sensação engraçada de voltar a enxergar a juventude verdadeiramente jovem, quase infantil, da frente daquele espaço arborizado e frondoso (de idade, construções velhas, daninhas invadindo tudo, portões carcomidos e algo de nostalgia no ar).

Fiquei lá, parado por um tempo, enxergando aquelas pequenas almas e pensando na minha pobre alma. Seria ela ainda tão pobre? Foi então que o menino chamado Emílio passou. O pai em um carro complicadamente alemão e bem caro. O garoto levantou da calçada em que flertava com uma garotinha, sem nem saber o que significava o verbo — muito antiquado para aquela juventude nova.

Encostado em uma grade, com um cigarro na mão, esperando Daphne apontar em seu carro de luto, vi a cena que me balançou de verdade.

Lembra quando a gente era jovem? Lembra de nosso primeiro cigarro? Pois então, todas as “mãe-,-vou-dar-uma-volta-pela-cidade-e-já-volto-,-preciso-espairecer” e nós éramos ainda tão quinze-anos, não é?

Muitas vezes não aguentávamos mais aquele fingimento “acho-que-minha-mãe-não-sabe-,-mas-isso-me-faz-crer-que-ela-é-tão-tonta”, que dizíamos para nossos amigos, nos gabando, mas sem entender o que a expressão dizia de verdade. Tolos nós éramos, por acreditar no fingimento de nossas mães.

Pois vi o menino chamado Emílio atravessar a rua com um cigarro na mão. Não é que o bastardinho fez questão de andar com o fumígeno apagado, na mão, o caminho todo? Ele sequer me olhava, mas eu me sentia desafiado por uma força maior que o olhar desafiador. Ele sequer perdia o tempo me fitando.

Bateu a porta pesada-blindada de janelas abertas do carrão do papai. Acendeu o cigarro e o pai fez o retorno na via que desembocava em um pátio oval, cheio de casas, uma vila, mas sem saída.

O tempo todo o menino Emílio permaneceu em um mix de mão na boca, tragando, e mão colada na porta, pelo lado de fora, para não esfumaçar o carro do pai, os bancos de couro de vitelo (será que o Peta sabe que ainda fabricam?). “Maldita falta de chuva me privando de coisas básicas como poder desodorizar o interior dos carros, nem lavar o coitado eu posso mais”, pensavam os dois em uma mistura de raiva e espanto.

O garoto voltou para sua casa, de fogões em chama, várias bocas e preparos múltiplos, e eu voltei para a minha mesinha, cheia de bagunças, papéis múltiplos, incertezas várias e contas para pagar.

Fiz tudo o que deveria fazer pelo dia, mas o menino Emílio permanecia, intocado em sua altivez fumante de 15 anos. Eu sentia cada músculo de minha pele sendo retorcido pela sensação do desafio tácito. Ele estava me provocando, não tinha outra opção.

Agarrei algumas garrafas que estavam vagueando fáceis pelas imediações e aceitei uma carona calado. De retorno em casa, no início de um final de semana, sentei em meu sofá queimado por bitucas e acendi o futuro de um pretérito que logo habitaria o cinzeiro.

Preparei algumas comidas toscas, mas que com nomes e denominações inteligentes poderiam vir a se tornar gourmets, e acendi o último suspiro de esperança de que a noite poderia acontecer. A cerveja gelada desceu suave no copo-caneca que eu ganhara de jabá no início da semana, mas que só agora estava em minha posse.

Acendi mais outros cigarros, fumei!

Sentado na poltrona, comecei a pensar em um monte de coisas, então começou a chover!

Maldito menino chamado Emílio, vai poder voltar a fumar com as janelas fechadas!

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