Vinhozinho

Tuliosil
COZIDO FARTO
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5 min readApr 9, 2015

Ou o que eu escrevo quando penso em um vinho barato encontrado na gôndola

Por Tulio Silva

Nunca parto do princípio de que um vinho barato é necessariamente ruim. Pelo contrário, encontrar um bom, ou pelo menos razoável, é sempre desafiador. “Mentalidade de turco” — que me perdoem os politicamente corretos — , mas os ascendentes árabes são ótimos mestres da barganha. É mais ou menos isso, negocia-se daqui, oferecem-me daí.

Pois bem, o contrário também segue a mesma lógica. Altos valores nem sempre querem dizer melhores vinhos em um comparativo. E isso afirmo com a firmeza de alguém que lê bastante a revista em que trabalha, muitas vezes editando o texto.

E mesmo sem participar de degustações, lendo aquelas que os outros participam e, claro, mexendo com o texto depois, sempre reparo algo engraçado nesse sentido: o vinho com a maior nota do ranking muitas vezes é muitíssimo mais barato que os outros do top três.

Um rótulo muito barato, pelo menos para mim, sempre manda para dentro da cabeça: larga produção! Deve contar na casa dos mil milhares o número de garrafas que rolam pelas adegas. Isso é um problema? Claro que não! Muito das vezes, para uma vinícola ser comercialmente viável, ainda mais se tiver um grande currículo, é preciso fazer algumas tiragens que vendam de balde. Preço atraente aos olhos, um nome a zelar e algo de certa forma correto, para mandar taça “agoela”.

Mas e aqueles grandes vinhos que custam muitos tostões? São experiências magníficas! Complexidade, caráter, personalidade e por aí vai. Um vinho, para custar vários milhares, tem que ter algumas características matadoras. Não dá pra enganar um mundarel de pessoas com algo ruim. É claro que sempre tem o novo rico trouxa que toma mijo de verdade achando que é sauvignon blanc — mundialmente conhecido por ter aroma de “mijo de gato”. Na verdade, essa informação eu não apurei.

Estava eu comentando certa vez que sauvignon blanc me incomodava por conta do aroma “meio zuado” — era o que eu queria dizer — , mas saiu “meio mijado”. Ao que um jornalista, conhecido com quem eu trovava a conversa, disse-me exatamente isso: “mas é assim mesmo, sauvignon blanc é mundialmente conhecida por ter certo aroma de ‘mijo de gato’”. Por isso de ter usado a metáfora no bloco de cima.

Mas é claro que um vinho caríssimo tem motivos para tanto. Seja por conta de uma garrafa muito grã-fina — isso dito para já começar mijando, digo, zuando — , ou por ser um vinho que determinada forma de produzir aliada com certo tipo de armazenamento concedeu características excepcionais em boca, olho e nariz.

Existem bons vinhos para tudo! Vá convencer sua avó de jogar fora o vinho do casamento que ela guarda até hoje, vá? Quero ver dizer a velhinha que aquela bebida de Baco, em específico, não é boa. É até capaz que a coitada resolva abrir e beber na sua frente — ainda que tenha gosto de vinagre podre —, e dizer que é um vinho muito bom.

O exemplo acima ilustra dois fatos, mas vamos pelo mais óbvio primeiro. Quero ter a certeza que você está lendo (ah, e, claro, tentar te prender mais um cadinho aqui na minha pira). A velhinha pode estar bebendo a pior coisa do mundo, mas a lembrança que aquela tinta suja desperta na mente dela, por si só, já é capaz de camuflar todos os defeitos do “bravo” vinho — ou não é bravura aguentar todos aqueles anos sem nunca ter sido aberto, jogado fora ou até mesmo, por algum descuido de netos ou empregadas (e não vamos ser hipócritas com esse termo aqui — se sua avó tem uma garrafa de vinho guardada, ela não deve ser mal da carteira), ter quebrado devido a tanta osteoporose.

Por outro lado, esse mesmo despertar, ao tomar de uma taça, acontece com o bom conhecedor dos viníferos. Pode ser a primeira vez que ele tem contato íntimo com aquela garrafa, mas ela com certeza vai despertar um monte de coisas no sábio bebedor. Os taninos, primeiramente, são lembrados por conta própria — reconhecidos, na verdade — , mas depois eles acordam lembrancinhas de outros tipos já bebidos e que aproximam a experiência. Conhecer vinho é isso, é beber vinho!

E gente de Deus, como eu sou prolixo. Disse tudo isso apenas para falar de um vinho barato que encontrei na gôndola do supermercado. O dito não valia nem duas dezenas.

Eu, na verdade, estava a avaliar outro rótulo, três vezes mais caro, quando meus olhos foram descendo — no mesmo movimento que dos cabelos vamos para uma bela bunda, brasileiros que somos — , e foi aí que eu encontrei aquele português da Península de Setúbal.

Era um desafio claro, dirigido à mim. Os portugueses, por esses tempos — e já faz tempo isso — , escoram-se sempre nos entornos das três dezenas. Esse não, era tinhoso, queria ser mais barato. Foi então que abalizei questões como quantidade de produção, presença de enólogo, abraço de uma organização específica. Enfim, fui lendo o rótulo e calculando certos valores embutidos — ah, e claro, penando no embutido com o qual aquelas taças iriam se casar.

No fim das contas, valia a pena arriscar na criatura. Na pior das hipóteses, usaria um vinho português para fazer ragù italiano. Mas confesso, até que ele é bem bebível.

O rótulo apresenta características interessantes como a tanicidade “comunistinha-do tenisinho-caro” — a rebeldia é bem fraca, mas permanece nos lembrando as ideinhas dela. Corte 75% Castelão e 25% Aragonês, o caro apresenta fruta “um tanto quanto demais da conta”. Grande parte dela, vermelha. Ah, quanto à cor, também. Tão rubra, que se cair na roupa — em específico na gola da camisa — , melhor sair de casa que vão achar que é batom.

Ele é/ foi o melhor vinho da minha vida? Nunca vai ser! Mas cumpriu o “papel social do indivíduo”, desafiou-me. Cuidou para que eu pensasse algumas coisinhas e acreditar que pelo custo benefício, ainda mais pelo tanto de merda que se bebe por aí — cedi-me o direito de não usar mijo agora, ainda que fosse o mais lógico — , vale a pena em determinados momentos.

No caso, naquelas circustâncias em que os 13% de álcool se fazem necessários. E olha, eles são bem claros no nariz, mas não incomodam muito, não. Evite ficar metendo o dito nasal à procura de alguma história complicada — que não vai ter — , e tudo bem, beba, apenas.

É um vinho fácil de beber. Tem um corpo bem fluido, levinho — depois que sua avó terminar de tomar aquele trapo sujo em forma de lembrança de casamento, abra uma garrafa dessa, bem a toa, e conheça a história da velhinha um pouco mais.

O que eu tomo agora é um 2013; queria perceber um 2014, novinho em folha, com sua maior juventude, vai saber? O Vinya, da José Maria da Fonseca, não fez minha cabeça. Mas deixou a noite a toa bem agradável, confesso. Agora é esperar pelo dia, para saber se virá um contragolpe rasteiro ou a permanência desse texto online.

Preciso encher mais um cadinho de minha taça, até mais.

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