#Reunião10: O auto de resistência é uma licença para matar

Crédito: Lucas Moritz

“Os casos de autos de resistência seriam os mais simples de se investigar. Já que de início é sabida a autoria e a materialidade. Faltam apenas as circunstâncias em que ocorreu o assassinato. Mas, no Brasil, em 60 mil casos de homicídios, apenas 15% é resolvido. É um país que está mais preocupado com o patrimônio do que com a vida”, afirmou o sociólogo Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ. O pesquisador apresentou, nesta quinta-feira (7/4), durante a oitiva da CPI dos Autos de Resistência, os dados levantados pelo o estudo “Quando a polícia mata”. O encontro também marcou o relato sobre as pesquisas realizadas pela ONG Justiça Global e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional. Após 10 encontros, a CPI foi suspensa por 30 dias para a análise e sistematização de todos os materiais e relatos colhidos durante as oitivas.

Crédito: Lucas Moritz

De acordo com a Lena Azevedo, da ONG Justiça Global, desde a Ditadura Militar, o auto de resistência é utilizado para burlar as investigações sobre os homicídios, e a estratégia foi incorporada pela Polícia Militar. E mesmo com a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora, os registros não diminuíram. Em 2014, o Rio de Janeiro contou com 584 casos, já em 2015, 670 pessoas foram mortas. Diante do aumento no número de homicídios em decorrência de operações policiais, a Justiça Global envio, em 2015, denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA). “A própria ONU fez, em 2006 e 2009, críticas ao auto de resistência como sintoma do racismo estruturante do Estado brasileiro”, afirmou.

Onde a polícia mata?

A pesquisadora disse ainda que a guerra às drogas leva à criminalização e demonização da favela. E a mídia tem especial participação nisso, já que representa a favela como o espaço privativo do medo e da violência. Diante disso, a Justiça Global organizou o relatório “Onde a polícia mata”. O documento é disponibilizado em um site de mesmo nome com um mapa interativo que aponta as mortes ocorridas, de 2010 a 2015, em operações policiais. “A ideia é dar visibilidade sobre onde o Estado mais mata: em territórios pobres e periféricos do Rio de Janeiro. O 41º Batalhão de Polícia Militar lidera o número de autos de resistência. Com 69 homicídios em 2014, a área representa uma taxa de 12,87 mortes por 100 mil habitantes. Taxa maior que a apresentada em todo o estado de São Paulo no mesmo período, que representou 10,2”, afirmou Lena, ao reconhecer que o auto de resistência autoriza o policial a matar e a culpabilizar a vítima.

Quando a polícia mata

Crédito: Lucas Moritz

Segundo o sociólogo Michel Misse, há a difusão da ideia de que se a polícia está envolvida na ação, o homicídio é legal. O estudo “Quando a polícia mata” revelou que, de 2002 a 2010, ocorreram 10 mil autos de resistência. Só o subúrbio da zona da Leopoldina apresentou 1.105 assassinatos. “Nenhuma país do mundo tem esses dados. A relação dos homicídios e o auto de resistência mantém um padrão e uma localização. Em 2005, foram 707 casos, destes, 510 geraram registros de ocorrência, ou seja, mais de uma vítima em cada notificação. Apenas 355 se transformaram em inquéritos, destes, 19 chegaram ao Tribunal de Justiça, em até dois anos, 16 foram arquivados; 2 foram para julgamento e apenas 1 caso resultou em condenação. Há uma indiferença aguda sobre sobre a vida das pessoas, principalmente daquelas que se suspeita da vítima”, afirmou Misse.

Uma das principais dificuldades para a resolução dos casos, de acordo com a pesquisa, é a falta de elementos técnicos que deem conta da investigação. Além disso, o processamento legal dos autos de resistência, o que acontece depois que a polícia mata, não representa uma tipo penal, é apenas uma classificação da prática policial. Algo que, de acordo com pesquisadores, deveria gerar uma atuação mais incisiva do Ministério Público, mas ao contrário, acaba se abstendo. Há ainda, no que tange ao trabalho técnico, o impedimento da perícia no local do homicídio muitas vezes adulterado pela própria polícia.

Crédito: Leon Diniz

“Há muitas fraudes processuais. Além das armas não serem apreendidas, os projéteis não ficam alojados nos corpos das vítimas, porque a bala é de fuzil 762, que ultrapassa o corpo. Isso dificulta o exame de balística e impede a apuração de provas técnicas para esclarecer o caso. Os familiares acabam tendo que provar a inocência da vítima, informando se a pessoa trabalhava ou estudava. Mas, as suposições sobre a culpabilidade da vítima imperam, isso faz com que a impunidade persevere”, afirmou Carolina Grillo, uma das pesquisadoras do estudo.

Direito Internacional

De acordo com a estudiosa do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, Beatriz Afonso, a Corte Interamericana determinou, em 2011, que o Brasil reabrisse o caso das chacinas ocorridas em 1994 na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão. As duas chacinas resultaram no homicídio de 26 jovens e no estupro de três mulheres. À época, a Corte argumentou que o Estado brasileiro deveria trabalhar para a responsabilização dos envolvidos. O Ministério Público reabriu o inquérito, entre 2012 e 2013, mas verificou na prática a falta da perícia local e tratou apenas dos casos de abuso sexual. “Na ocasião, os corpos foram deslocados e a perícia fez uma maquiagem explícita. A segunda chacina foi arquivada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), porque disseram que a polícia agiu como mero observador”, afirmou Beatriz.

CPI não vai repetir obviedades

Crédito: Lucas Moritz

De acordo com o relator da CPI dos Autos de Resistência, deputado estadual Marcelo Freixo, o desafio da Comissão é fugir das constatações óbvias. O óbvio é que a polícia é violenta. “Precisamos contribuir para chegar a lugares que talvez só o pesquisador não chegue, desvendar as engrenagens com a legitimidade que se tem. E a relação entre a localidade e a letalidade da polícia é decisiva para estudar essa engrenagem. A Polícia Civil se transformou no Tribunal de Justiça. Ou, nessa relação, o Ministério Público inicia o julgamento? A inversão do ônus da prova é cruel. Se você é jovem, pobre e mora na favela, prove a sua inocência”, afirmou Marcelo Freixo.

Misse acredita haver um paradoxo na alta taxa de letalidade policial. “O mercado varejista de drogas também existe nos bairros ricos e em outros países, mas não carrega esse ínidice de violência que vemos nas favelas. Em qualquer lugar no mundo, o suspeito de tráfico se entrega. Por que nas favelas brasileiras isso não ocorre? Porque ele sabe que pode ser morto ao se entregar, então, enfrenta a polícia. Temos que quebrar essa lógica”, disse.

CPI é suspensa por 30 dias

Desde o início da CPI dos Autos de Resistência, foram realizados 10 encontros com oitivas que deram conta da participação de especialistas em autos de resistência, pesquisadores universitários, policiais em exercício, familiares de vítimas, além de autoridades públicas do campo jurídico e representantes das categorias da Segurança Pública. Para a análise e sistematização de todos os dados, materiais, relatos e conteúdos gerados pela investigação, a CPI foi suspensa por 30 dias.

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