#Reunião4: “A barbárie que vai é a mesma que volta”, diz Ignácio Cano

Crédito: Leon Diniz/Equipe

O pesquisador do Laboratório de Análise da Violência UERJ, ao ser ouvido na CPI dos Autos de Resistência nesta quinta (26), na Assembleia Legislativa, ressaltou que a polícia não é a única responsável pelo alto índice de casos de execuções sumárias no Rio de Janeiro. Há na estrutura do Estado uma “conspiração de silêncio” formada por amplos setores sociais, que incluem o Ministério Público e o Poder Judiciário, além da mídia. O resultado desse “sistema perverso e de falta de controle da força” está presente não só nas estatísticas, mas em uma cultura de vingança que leva à promoção de uma contínua barbárie a partir de uma certa regularidade na incapacidade do Estado de investigar adequadamente e punir os responsáveis por esses crimes.

“A polícia que mata é a mesma polícia que morre e nenhuma polícia no Brasil morre no nível da polícia do Rio de Janeiro. Nós temos ciclos de vingança que consistem em: criminosos executados pela polícia em serviço e, posteriormente, temos policiais executados por criminosos, normalmente na folga. A barbárie que vai é a mesma barbárie que volta e assim nós temos esses casos terríveis de policiais que são arrastados até a morte, como aconteceu recentemente no Rio de Janeiro. Portanto, os policiais não são os beneficiários deste sistema perverso e de falta do controle do uso da força. Eles são também vítimas dessa conspiração do silêncio”, disse Ignácio Cano.

A falta de investigação adequada por parte da Polícia Civil em inquéritos policiais com a prática de “cópia e cola de depoimentos de policiais”, identificados em estudos, ao invés do colhimento individual da versão de policiais envolvidos em casos de ocorrências letais, somadas a ação do pedido de arquivamento feita pelo Ministério Público, sem contestação do Poder Judiciário, levaram o Rio de Janeiro ter a polícia que mais mata e morre no Rio.

Rio tem a maior taxa global

Em 2014, dados Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que em números absolutos, o Rio de Janeiro ocupa o 2º lugar nas estatísticas de casos de pessoas mortas pelas polícias, com 554 mortes. Quando essa taxa é dividida pelo contingente populacional, o Rio alcança o 1º lugar com o valor de 3,5 pessoas mortas para cada 100 mil habitantes. “Observe-se que esse valor é superior a taxa de homicídios global de muitos países no mundo. Só a polícia do Rio mata mais pessoas que todas as polícias em vários países”, destacou Cano.

Segundo dados de janeiro a outubro dos últimos três anos, o Rio de Janeiro voltou a apresentar aumento do índice de mortes por intervenção policial. Foram 339 casos em 2013, 480 em 2014 e esse ano já somam 568 mortes, mostrando que há um ambiente maior de violência. Entre janeiro de 2010 e agosto de 2015, foram 3.256 casos de homicídio decorrentes de intervenção policial.

A principal conclusão dos estudos feitos sobre letalidade de ação policial ao longo dos anos é sempre a mesma. Mostra que execuções sumárias não resultaram em qualquer punição porque o Ministério Público não oferecia denúncia e o Judiciário acolhe o pedido de arquivamento do MP. A “conspiração do silêncio” só é desmontada a partir de duas situações: quando as vítimas são escandalosamente inocentes, por exemplo, no caso de crianças mortas por intervenção policial, como o Eduardo de Jesus, no Complexo do Alemão, em abril desse ano.

Ou quando há evidências incontestáveis de que a versão oficial é sempre a mesma, como foi o caso do flagrante filmado com celulares por civis como recentemente aconteceu no Morro da Providência, pois é quando a ação policial é individualizada a partir da prova. “Os policiais que são considerados culpados são satanizados. A própria corporação que antes defendia a versão oficial, quando é comprovado a responsabilidade do policial, diz que ele não era policial, era um bandido travestido de policial, porque um dos “nossos” nunca poderia fazer isso, dessa forma a corporação foge da sua responsabilidade institucional”, afirmou Cano.

Exceções

O sociólogo destacou que há no Ministério Público “honrosas exceções” de promotores que de fato investigam possíveis execuções sumárias, como na região de São Gonçalo, que em recente período acolheu 40 casos de autos de resistência. “Será que isso só acontece em São Gonçalo? Ou será que alguns promotores é que têm a coragem de cumprir com sua obrigação?”, questionou Cano que criticou a falta de controle externo da polícia, prerrogativa constitucional, por parte do Ministério Público.

“Há alguns anos, a Secretaria de Direito Humanos do governo Federal fez uma solicitação de metas de redução da letalidade policial ao MP. A resposta do MP foi de que isso era da esfera administrativa e não de competência do Ministério, mas que se ainda fosse, teríamos que entender que vivemos numa guerra e que a polícia tem que se defender. Ou seja, o MP além de ter uma postura completamente técnica, ainda se deu o trabalho de justificar a política de confronto operante”

Bandido bom é bandido morto

A crescente aderência na opinião pública sobre uma concordância da política de extermínio por parte da polícia é considerado por Ignácio Cano uma raízes do uso excessivo de força letal por parte da polícia. Em 2009, pesquisa da Secretária de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, mostrou que 43% da população concordam com a tese de que “bandido bom é bandido morto”. Em 2015, pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que em abrangência nacional o índice de concordância com a tese sobe para 50%. Porém, se a tese “bandido bom é bandido morto” tem alcance social, a inclusão da pena de morte na constituição não tem a mesma receptividade.

“Muitas das pessoas que dizem que ‘bandido bom é bandido morto’ não necessariamente apoia mudança legal para que a pena de morte seja instituída Brasil. Elas apoiam simplesmente que a lei seja ignorada em caso de bandidos, mas quem será que vai decidir quem é bandido e quem não é? E até quando, como e com quem devemos ignorar a lei?”, perguntou Cano.

Ignácio Cano, em estudo realizado diretamente com policiais, identificou que 40% dos policiais também concordam a prática do extermínio. “Independente do canto da sereia que a polícia recebe para exercer o papel punitivo que não corresponde a ela legalmente, porque o papel que a polícia tem é preventivo, se ela se deixar levar por esses cantos de sereia estará descumprindo a lei, deixando de ser profissional”.

A doutrina do confronto armado a partir da guerra ao tráfico de drogas, o ambiente violento da polícia, o ethos de guerreiro presente da cultura dos agentes, além de experiências de uma infância violenta, estresse, além de traumas como a experiência de ver colegas de trabalho sendo mortos, foram expostas pelo sociólogo Ignácio Cano como a arqueologia capaz de explicar a normatização do uso excessivo da força policial na política de segurança pública, também presente senso comum da população.

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