Como o rolê me ensinou que armas não levam a paz.

Caio Fernando
Crônicas da Praça
7 min readMar 8, 2018

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Importado diretamente da terra do Mcdonald’s, o debate que chega agora aqui no Braza é o fim da restrição do porte de armas, basicamente, agora geral vai poder andar armado. O argumento principal é que o Brasil é um país zoadasso em termos de violência e como o Estado falha em proteger a população, o esquema é geral se armar pra supostamente se defender. Um cara vai entrar na tua casa? Mete um tirão de 38 nele. Um cara vai te estuprar? Descarrega sua PT no safado (Ok, nessa eu até concordo). Os ladrões de carro vão te tomar? Mete a Glock neles.

A real é que esse discurso é ridículo, sério, armas não defendem ninguém, armas ferem, armas servem pra isso, ferir e matar e nem digo isso fazendo juízo de valor, elas foram inventadas pra isso. Você pode usar uma faca pra limpar um peixe além de enfiar no bucho de alguém, mas tu vai fazer o que mais com um fuzil além de foder com os outros que você acha que querem te foder? Enfim, eu não acho que as pessoas devam relegar seu direito de auto-defesa a uma instituição falida como a segurança pública, não sou idiota, até porque também não sou lá muito entusiasta da polícia militar, mas se a preocupação fosse realmente a auto-defesa, estaríamos lutando por flexibilização da comercialização de instrumentos como tasers e sprays de pimenta. Também creio que as armas num geral são um fetiche masculino, a sensação de poder, a ilusão de que a violência é uma virtude, o culto a virilidade, tudo calcado na nossa socialização masculina direcionada pro combate, pra competição. Nenhum de nós quer uma arma pra nos defender, ainda que saibamos que a violência é um problema sério no Brasil, isso tem mais a ver com nossa idéia de poder do que com auto-defesa em si.

Quer ver outro exemplo que entra nisso? Carros. Historicamente por terem muitos direitos negados convencionou-se que os homens dominam o trânsito (vide as mentiras machistas como as de que as mulheres dirigem mal), existem estudos que comprovam que nós interpretamos o nosso carro como uma extensão do nosso território e por conta disso ficamos muito mais territorialistas, mulheres também ficam, mas isso fica muito pior por conta da nossa socialização como homens também. O carro, assim como as armas também são um fetiche masculino, enquanto a arma é a simbologia do instrumento de combate e da conquista, o carro é em si o prêmio, a validação material de que sua virilidade moderna foi aceita (tira-se a carta no fim da adolescência, na transição pra vida adulta, agora você é um homem, não pelo carro, mas pelos 18 anos), com o carro também acreditamos que nossas empreitadas sexuais serão muito facilitadas, não tem o porque d’eu me alongar aqui quanto ao carro, acho que já deu pra entender. Pra tirar pelo menos a habilitação, você tem que passar por provas teóricas, práticas e testes psicológicos pra saber se você está apto a dirigir com o mínimo de civilidade sem por a vida de terceiros em risco, as pessoas a favor da revogação do estatuto do desarmamento, crêem que essas medidas podem ser aplicadas as armas também para evitar que criminosos e psicopatas se armem e cometam crimes contra a vida humana. O problema é que passar num teste psicotécnico num é garantia de nada, primeiro porque eles ocorrem num ambiente controlado em que você tem plena ciência de que é um teste e de que tem que agir de certa forma para concluí-lo com sucesso, isso não ocorre na rua quando alguém te fecha com o carro, não é a toa que muitos homens andam já armados com pedaços de pau dentro do carro por conta dessas questões, uma vez que sentem que seu território (o carro) e por associação sua honra foram ameaçados, invadidos e ofendidos, a raiva toma conta, catalisada pela socialização e partimos pra briga sem pensarmos duas vezes. Quantas mortes, acidentes, tentativas de homicídio e tragédias não decorrem justamente de brigas de trânsito?! Será que com armas, quando o sangue sobe a cabeça e mesmo tendo licença para o porte teremos a civilidade e frieza de saber que nossa reação extrapola a ocasião? Ou vamos sacar logo a arma que tivermos contra quem nos ofendeu?!

Como skinhead e uma pessoa que passou muito tempo nas ruas com as piores e melhores companhias, nas piores e nas melhores situações, eu posso afirmar categoricamente que a difusão do porte de armas só tornará tudo pior. De todas as ocasiões que eu andei armado, fosse com uma faca ou um soco inglês, ou mesmo tivesse uma vantagem estratégica como simplesmente estar em maioria, eu percebia como pra mim era fácil escalar as coisas pra que terminassem em violência, ainda que me armasse no intuito de defender, eu que já era uma pessoa que vivia metido em briga e discussão todo final de semana, me via muito mais propenso pra violência, se alguém me olhasse por muito tempo, eu sustentava o olhar. Ele ia fazer o que?! Eu tinha certeza que tinha um trunfo. Se alguém desse em cima da minha namorada, eu podia chegar empurrando a pessoa tranquilamente. Ele ia fazer o que?! Eu tinha certeza que tinha um trunfo. O único jeito d’eu tomar um preju numa situação dessas era a pessoa ter uma arma mais perigosa que a minha e ainda que não fossem difíceis de arrumar, ninguém andava com uma arma de fogo assim por aí. Entende o que eu quero dizer?! Desarmado, mesmo que eu soubesse que iria brigar com a pessoa, ou mesmo que fosse eu quem iniciasse a “desinteligência”, eu estava muito mais disposto a dialogar, debater e ir escalando as coisas conforme a situação pedisse, agora armado, era simples, eu não precisava dialogar, era só impor minha vontade através da violência. Por sorte nunca precisei esfaquear ninguém, nem esmurrar a cabeça de alguém com uma soqueira até o crânio ficar fofo.

Outra coisa que aprendi com minha experiência nas ruas é que armas não significam nada na mão de quem não sabe usar. Já tentaram me esfaquear três vezes, em 2 eu não tive medo, porque eram pessoas que tinham a mesma cabeça que eu, se eu fosse uma pessoa que num fosse metido com essas coisas (o que pra mim é o certo né, ser uma pessoa funcional, do bem, equilibrada), talvez a história teria sido triste pra mim, em uma terceira ocasião durante um assalto, eu fui sem medo e ainda consegui bater no assaltante que não sabia o que estava fazendo com aquele canivete na mão. Em outra ocasião, lembro que um desafeto de uns amigos estava armado com uma faca e esses meus amigos pediram pra ver a faca em questão, quando ele mostrou, eles tomaram a faca da mão dele e o mandaram ir embora pra não apanhar. Da mesma forma que somos punks e skinheads e estamos acostumados em maior ou menor grau com a violência, assaltantes, traficantes e outros criminosos que agem armados, por mais que ajam no nervosismo e não saibam operar profissionalmente um revolver, eles não tem medo de usá-lo e vão usá-lo se necessário, infelizmente dadas as mazelas sociais do nosso país que colocam eles no crime, acabam criados habituados a violência, seja por conta da negligência do Estado em relação a sua dignidade como ser humano, seja pela violência criminal ao seu redor, muito diferente do tal “cidadão de bem” que deseja uma arma pra se defender e defender sua propriedade, esse, ao contrário, vem de um meio relativamente equilibrado comparado ao do criminoso, garanto que não teria a frieza e nem saberia reagir com precisão em uma situação de estresse como a de uma reação a uma agressão, assim como esse nosso desafeto foi desarmado e feito de chacota, muitos que detem o porte de arma (coloca-se aí policiais militares em horário de folga, ou seja profissionais que convivem com o crime e são treinados pra essas mesmas situações de estresse) acabam tendo suas armas roubadas e muitas vezes mortos pelas próprias armas no ato do crime.

Arrisco a dizer aqui um palpite; os defensores da revogação do estatuto do desarmamento além de não estarem em contato direto com a questão da violência, que é infinitamente maior que a esfera da segurança pública e sim efeito colateral de desigualdades estruturais inerentes a um sistema de acúmulo e concentração de renda, também são os mesmos que advogam o enxugamento do Estado e mais abertura de mercado, não por uma concepção minimamente libertária de que o Estado tolhe suas liberdades individuais, mas sim porque na conjuntura atual malemente ainda é uma pedra no sapato pra que mercados externos não engulam o interno e voltemos pra crise econômica da década de 90. O que isso tem a ver com difusão do armamento da população? É simples, eles querem se aproveitar de um problema social grave no Brasil, exagerá-lo e inventar uma solução que pode ser adquirida na loja autorizada mais próxima. Em breve veremos a flexibilização na quantidade de armas que você pode ter enquanto colecionador (que já não são poucas) e logo abriremos o mercado pra importação de armas, sobretudo americanas. Esses mesmos grupos e partidos além de já serem financiados também receberão gratificações graúdas pelo seu bom trabalho que alavancarão suas prósperas carreiras enquanto deputados e senadores. Enquanto nós nos matamos nas ruas aumentando a contagem de mortos, eles lucram com o nosso sangue, tanto o de quem morre quanto o de quem atira.

“Enquanto os chefes de Estado se divertem, nós olhamos pro mundo pelo cano de uma arma” — Warhead, UK Subs.

Pra quem quiser ler mais:

Sobre a posse de armas pra colecionadores como forma de burlar o controle da Polícia Federal:

https://oglobo.globo.com/brasil/numero-de-brasileiros-que-se-tornam-atiradores-para-obter-licenca-explode-no-pais-21645849

Sobre as relações de masculinidade e violência:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000100012

Sobre como a proliferação das armas é nociva até pra quem quer ter uma arma:

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html

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