Comunicação Dialógica e Autismo em Uma Advogada Extraordinária

Como a série se comunica com o público sobre o autismo

Ana Fermino
Creative Bee
5 min readNov 27, 2022

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Sendo um fenômeno desde a sua estreia em agosto desse ano, o k-drama sul-coreano da Netflix “Uma Advogada Extraordinária” vem sendo bem recebida no mundo todo, mas principalmente no Brasil. Desde o seu lançamento, a série se manteve no topo das 10 séries mais assistidas na Netflix por diversas semanas. Devido ao tamanho sucesso, a série já está com a segunda temporada confirmada para 2024, além de ter sido indicada para diversos prêmios.

A série é baseada em uma história real da cientista americana Temple Grandin, diagnosticada com autismo aos 2 anos. Na época, os médicos afirmaram que ela teria diversos problemas de convívio e também dificuldades na fala. Mas, apesar de ter passado por uma adolescência dificultada por bullying, ela hoje ela é uma psicóloga e zootecnista renomada, sendo em 2010 mencionada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.

Assim como Temple Grandin, a protagonista da série, Woo-Young Woo (interpretada pela Eun-bin Park), também muito cedo foi diagnosticada com autismo. O diagnóstico veio a partir da atenção ao fato de que ela não falava, e junto a isso, também veio a atenção ao fato de que ela poderia ter outros problemas sociais e de aprendizado nos próximos anos.

A situação mudou quando, aos 5 anos, Woo vê seu pai sendo agredido e, a partir disso, passa a declamar repetidamente a lei sobre agressão com muita clareza. A partir disso, seu pai descobre que sua filha memorizou toda a legislação sul-coreana sozinha, o levando a ver sua filha como super dotada. Nesse momento, para muitas pessoas, pode ter sido uma espécie de red flag em relação à série… Seira apenas mais uma série a “romantizar” uma pessoa no espectro? A resposta vem muito rápido, e vemos que a série é muito mais complexa do que falar sobre a inteligência da Woo.

Através de um senso de humor leve e um roteiro bem elaborado, a série consegue tratar de diversas questões sociais complexas, sendo assim, a série se compromete a não apenas oferecer um entretenimento que mostra como é a vida de uma pessoa neuro atípica, mas também através de diversos exemplos, construir uma comunicação dialógica propondo a reflexão sobre a diversidade apresentada na série.

Em cada episódio são mostrados detalhes do cotidiano da Woo, que está se iniciando no mundo jurídico e, não apenas, foca em como ela consegue se desenvolver no trabalho, mas também aborda diversos aspectos sociais em que ela é inserida dos quais ela precisa lidar. Ela é contratada em um escritório onde todos estão cientes de que ela é uma pessoa do espectro, e com isso, passa por muitas situações em que as pessoas as tratam com falta de empatia devido ao seu comportamento. Em uma das cenas em que a advogada precisa se apresentar, ela explica: “Para muitos, minha fala e minhas ações podem parecer estranhas, mas tenho amor pela lei e, mas tenho amor pela lei e respeito pela ré, assim como qualquer advogado”.

Uma das cenas que exemplifica bem a maneira em que a comunicação dialógica é no momento em que ela se depara com a porta giratória do escritório, e ela não entende como poderia lidar a situação. Nesse momento, seu (crush) amigo a encontra e ao notar sua dúvida em relação à porta, passa a explicar como ela poderia superar aquele desafio. Ele explica a ela que os giros da porta poderiam ser entendidos como uma valsa, e se ela conseguisse entrar no ritmo da porta-valsa, ela poderia dançar com ela, ou seja, atravessar a porta. O que então era um grande desafio para Woo, a partir daquela exemplificação, pode se tornar algo compreensível para sua realidade. Essa temática de aprendizado através de exemplos acessíveis ao educando já era uma das linhas de defesa Paulo Freire. De acordo com Freire, “Enquanto a significação não for compreensível para um dos sujeitos, não é possível a compreensão do significado à qual um deles já chegou e que, não obstante, não foi apreendida pelo outro na expressão do primeiro.”

Também vemos como Woo, aficionada por baleias, é ensinada a, desde cedo, não falar sobre baleias a qualquer momento, uma vez que o assunto pode não fazer sentido para o diálogo assim, evitando uma comunicação unilateral. Nesse momento, a partir de analogias a baleias serem muito eficazes para Woo, poderia não ser a melhor maneira de exemplificar o assunto para pessoas que não possuem o mesmo conhecimento que ela.

Como em cada episódio, a narrativa ocorre em torno de um novo caso que o time de Woo vai enfrentar, mais a frente na história vemos o caso de uma pessoa que está sendo acusada de assassinato. Vemos então que o acusado a é outra pessoa no espectro autista, porém, diferentemente de Woo, ele possui um grau elevado de autismo. A série então passa a, sem realizar uma comparação direta, nos mostrar como duas pessoas podem estar no espectro, no entanto, serem completamente diferentes. Diferentes tanto na sua maneira de agir, como em suas limitações e entendimento sobre o mundo. Nesse momento, novamente vemos a comunicação dialógica agindo através de exemplos acessíveis, mas nesse exemplo, a trama passa direcionar o seu ensinamento diretamente ao expectador das cenas.

Ao longo dos episódios, é incrível notar o tom de complexidade que a série vai aumentado conforme o tempo passa. A interpretação da Eun-Bin vai evoluindo como também a trama evolui a medida que a Woo vai se sentindo mais confortável em seu meio, e em nenhum momento abandona o tom dialógico em que se comprometeu desde o início a mostrar. A série cumpre seu papel como um dorama simples e leve, ao mesmo tempo que, com sucesso, nos traz diversas reflexões sobre como devemos lidar com a diversidade ao nosso redor, e, muitas vezes, como sermos mais empáticos com nós mesmos.

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Ana Fermino
Creative Bee

UX Writer para Chatbots e estudante de publicidade. Às vezes olho para câmeras imaginárias tal qual a Fleabag.