The Boys — Uma perspectiva sobre a imposição de mensagens

Como a imposição de mensagens acontece na sociedade em âmbitos coletivos e individuais e é satirizada na série The Boys

Sávio Marra
Creative Bee
Published in
6 min readNov 28, 2022

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A série The Boys (2019), do produtor Eric Kripke, é inspirada pelas revistas em quadrinhos de mesmo nome, lançadas em 2006 pelo norte-irlandês Garth Ennis. Esse universo tem como objetivo satirizar as diversas manipulações articuladas pelas elites da sociedade, fazendo uma analogia a essas organizações ao subverter completamente a ideia que existe sobre super-heróis e trazendo personagens que, “à luz do dia”, carregam a tradicional moral incorruptível e demonstram a vontade incessante de fazer o bem, assim como os tradicionais mocinhos de filmes e quadrinhos, mas que, “por baixo dos panos”, são piores até mesmo que os grandes vilões das ficções.

Os super-heróis

Em meados da década de 1930, os super-heróis foram inventados não só para entreter crianças, adolescentes e adultos, mas também para transmitir mensagens à sociedade. O Super-Homem e o Capitão América, por exemplo, são dois dos personagens mais conhecidos no mundo, e promovem de forma indiscreta uma imagem positiva em relação aos Estados Unidos e ao estilo de vida estadunidense; vestindo as cores da bandeira e carregando elementos estéticos característicos dos Estados Unidos, são fortes, imponentes, sempre conseguem resolver os problemas em que se encontram e, além disso, têm um senso de ética intocável e sempre prezam pela segurança e bem-estar de todos.

Assim como os dois citados acima, vários outros super-heróis transmitem mensagens sociais e sinalizam para ideias positivas em relação ao patriotismo e à moral. The Boys, porém, foi criado para ir na direção oposta a essa, e traz uma série de mensagens ásperas, como: a realidade da corrupção presente entre pessoas poderosas, que é mostrada tanto de forma literal, com personagens ricos e influentes que manipulam a política, a opinião pública e fortunas para chegarem a seus objetivos; como de forma simbólica, pelos “heróis” que usam seus superpoderes para satisfazer seus desejos e terem vantagem no que quiserem, inclusive, literalmente passando por cima do cadáver de quem os atrapalha ou simplesmente os desagrada, e que são uma metáfora para os poderosos da vida real [já citados nesse parágrafo], mas também são uma representação de como provavelmente seriam as pessoas caso tivessem capacidades sobre-humanas. Além disso, a série critica o moralismo e puritanismo presentes entre os conservadores e o falso progressismo que muitas vezes é promovido pelas mídias.

Os “heróis” da série, são paródias escancaradas dos personagens da Marvel Comics e da DC Comics, sendo versões completamente podres dos Vingadores e da Liga da Justiça (nos quadrinhos há também versões dos X-Men, Quarteto Fantástico e até mesmo dos Jovens Titãs). Esses seres sobre-humanos, chamados de “Supers”, foram todos criados pela empresa Vought-American, que produziu uma droga chamada Composto V, que é aplicada em bebês para que cresçam com super-poderes; e a Vought faz contratos com seus pais para que esses finjam que os filhos já nasceram com as super-capacidades e também para que colaborem com uma agenda transmitida pela empresa, que faz com que esses meta-humanos cresçam e sejam educados quase exclusivamente para servirem aos interesses da corporação que os utiliza para fingirem que são heróis e, com isso, venderem produtos, entretenimento, marketing gerado em cima de suas imagens e até mesmo intervirem nas forças militares.

“Com grandes poderes, vem a certeza que você vai se tornar um b*sta”

Acontece que, nesse cenário, que é motivado apenas por ganância, os Supers quase sempre se corrompem e perdem o filtro de ética, uma vez que são postos na posição de deuses entre as pessoas e suas falhas sempre são encobertas. Na trama, os principais vilões são “Os Sete”, um grupo que é paródia da Liga Da Justiça. Esse grupo é liderado pelo Capitão Pátria, que tem os mesmos poderes, ao mesmo tempo que é o perfeito oposto do Super-Homem. Representando ainda mais a estética estadunidense, vestindo uma capa que é a própria bandeira do país, o Capitão Pátria é uma sátira simbólica aos Estados Unidos, sendo uma personalidade muito amada pelo povo, por ser o carismático herói mais poderoso do mundo, mas que na verdade é completamente psicopata e sabe que jamais sofrerá qualquer consequência independente das atrocidades que fizer.

Para contrapor os Supers, estão presentes nesse universo os protagonistas, chamados de “Os Caras” (que, em inglês, dão nome à série “The Boys”), um grupo formado majoritariamente por humanos comuns, composto pelo líder Billy Bruto, que teve sua esposa desaparecida por culpa do Capitão Pátria; Hughie, que teve sua namorada atropelada e morta pelo Trem-Bala (paródia do Flash); Marvin, o “Leitinho”, que teve sua casa de infância destruída e seu pai morto “acidentalmente” pelo Soldier Boy (paródia do Capitão América); Kimiko, a única Super da equipe, que é uma imigrante ilegal asiática, que foi separada de seu irmão, traficada para os Estados Unidos e transformada em sobre-humana por facções ligadas à Vought; e Serge, o “Francês”, que não tem desafetos específicos com os Supers, mas que se envolveu com Os Caras por dever favores a Billy Bruto. “Os Caras” são anti-heróis, movidos quase exclusivamente por um sentimento de vingança, têm como principal intuito expor e derrubar a Vought American, assim como eliminar os principais Supers, precisando buscar diversas formas estratégicas para alcançarem seus objetivos nesse cenário que os desfavorece tanto, visto que são humanos lutando contra “deuses”.

Acima / da esquerda para a direita: Francês e Leitinho; abaixo / da esquerda para a direita: Billy Bruto, Hughie e Kimiko.

Mensagens transmitidas à [super] força

Como já mencionado anteriormente, diversos temas sociais são debatidos em The Boys e, um deles, é sobre como a imagem dos mocinhos é propagada pela mídia, que impõe sobre a sociedade a ideia de seres perfeitos que fazem a função de salvadores. No mundo real, vê-se que os meios de comunicação de massa, têm a capacidade de propagar mensagens que podem levar as pessoas a se convencerem de ideias equivocadas e ficarem alienadas em diversos pontos relativos à realidade, como diz Paulo Freire: “[…] meios de comunicados às massas, através de cujas técnicas as massas são conduzidas e manipuladas […] não se encontram comprometidas num processo educativo-libertador.” (FREIRE, 1985, p. 49).

Na série, ainda, um outro processo de imposição de ideias é observado na própria criação dos Supers, onde, esses seres meta-humanos são alienados de sua origem, não têm conhecimento de onde vêm essas capacidades sobrenaturais que eles próprios carregam, além de também não terem opção de se negarem à condição de “super-heróis”, ou seja, são educados em um caminho que não usa de meios recíprocos de troca de significados, antes, tornam-se apenas extensão de um modelo de vida que é elaborado por uma organização e lhes é imposto por seus pais. É mostrado na série que os Supers são levados, desde de crianças, a “concursos de talentos de heróis”, participam de campanhas relacionadas a Vought e têm suas imagens comercializadas, tudo isso acompanhado por uma ideia que lhes é transmitida de que são seres especiais, melhores e “abençoados por Deus”. Sobre esse tipo de educação objetificante e disfarçada, Paulo Freire diz:

“O educador, num processo de conscientização (ou não), como homem, tem o direito a suas opções. O que não tem é o direito de impô-las. Se tenta fazê-lo estará prescrevendo suas opções aos demais; ao prescrevê-ias, estará manipulando; ao manipular, estará “coisificando” e ao coisificar, estabelecerá uma relação de “domesticação” que pode, inclusive, ser disfarçada sob roupagens em tudo aparentemente inofensivas.” (FREIRE, 1985, p. 53)

Luz-Estrela (personagem paródia da Estelar, da DC Comics), participando de um concurso de música infantil de Supers.

The Boys, entre as diversas críticas que apresenta, problematiza a imposição de mensagens, e mostra de que forma isso pode ser prejudicial, tanto num sentido coletivo e social, criando uma sociedade alienada que não usa de senso crítico quanto a uma série de fatores que envolvem o contexto político em que esta está inserida; como também mostra o quão prejudicial, num âmbito individual e psicológico, pode ser uma educação impositiva, que faz com que o educando tenha percepções deturpadas sobre o objeto comunicado e possa se desenvolver alheio a elementos de sua própria realidade.

Referências

FREIRE, Paulo. EXTENSÃO OU COMUNICAÇÃO. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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Sávio Marra
Creative Bee

Quase publicitário, apaixonado por redação, planejamento estratégico, business intelligence e neuromarketing