Difundindo os princípios Open GLAM do Creative Commons no Brasil
Como o Creative Commons Brasil abordou (com distanciamento) instituições de memória e falou sobre as licenças CC e os princípios Open GLAM durante a pandemia
Texto em português: Giovanna Fontenelle & Juliana Monteiro
Texto em inglês: Giovanna Fontenelle
Ilustrações: Patrícia Yamamoto
Neste estudo de caso, as integrantes da coordenadoria de Open GLAM do Creative Commons Brasil analisam a iniciativa de contato com instituições GLAM realizada pelas mesmas no início de 2020, com o intuito de auxiliar instituições de memória brasileiras a entenderem melhor como as licenças CC funcionavam, sobretudo devido ao estado de distanciamento social causado pela pandemia de COVID-19. A atividade teve impactos positivos e desencadeou algumas ações para o capítulo. Entretanto, para que este trabalho realmente alcançasse o seu potencial, algumas soluções e recomendações foram identificadas através da reflexão deste estudo de caso.
O contexto
O primeiro caso de COVID-19 no Brasil foi identificado no dia 26 de fevereiro de 2020. Não demorou nem três semanas. A partir do dia 16 de março, diversas instituições de memória brasileiras começaram a fechar por “tempo indeterminado”. A palavra “indeterminado”, usada por tantos, parecia sem significado. A maioria das pessoas não compreendia, até então, a dimensão do problema.
Em um primeiro momento, as instituições estavam preparadas para fecharem as suas portas, na pior das hipóteses, por algumas poucas semanas, quem sabe um mês. Com os casos aumentando e a pandemia piorando, não parecia haver muitas saídas. Era preciso encontrar uma solução para o fato de que as instituições encontravam-se inacessíveis. Restava finalmente apontar os olhos para o digital.
Enquanto isso, em fevereiro, o Creative Commons Brasil acabava de criar uma nova coordenadoria dedicada a Open GLAM, a qual focaria, ao longo de 2020, em auxiliar instituições de memória a abrirem os seus acervos utilizando as licenças CC para facilitar o processo.
E foi na segunda semana de abril que Juliana Monteiro, com a ajuda de Mariana Valente e Giovanna Fontenelle, resolveu entrar em contato com algumas instituições e realizar uma espécie de chamada aberta por e-mail. Afinal, naquele momento de extrema incerteza, seria importante compartilhar com algumas instituições que existiam alternativas ao tradicional espaço físico da exposição e criar um canal de comunicação mais direto.
A iniciativa também considerou a importância do capítulo brasileiro difundir as licenças CC junto às instituições GLAM, o que era um objetivo de longa data do grupo. Com a pandemia, logo ficou claro que os GLAMs teriam que reforçar ainda mais sua presença online, o que demandaria todo um esforço de identificação da situação dos direitos autorais de imagens, textos e recursos multimídia — e nada mais conveniente do que estimular instituições de memória a estudar a possibilidade de aplicar licenças CC aos materiais que pudessem ser liberados.
A avaliação de caso
Contatamos e fomos contatados. Criamos um endereço de e-mail especial do capítulo para atender instituições, o ccbrglam@gmail.com, e coletamos mais de 30 endereços de e-mail, ligados a diferentes museus, bibliotecas, institutos, secretarias, fundações, entre outros, espalhados por vários estados brasileiros. A mensagem elaborada para explicar a situação, o papel do CC e como o grupo poderia ajudar foi breve, mas objetiva:
“…diante do momento atual em que mais do que nunca museus, arquivos, bibliotecas e instituições congêneres, têm sido chamados a contribuir com o bem estar social por meio de exposições virtuais, lives em redes sociais e liberação de conteúdos online, gostaríamos de nos colocar à disposição para, atuando dentro da nossa missão, conversar sobre quaisquer dúvidas que você e sua equipe possam ter sobre direitos autorais e como usar uma licença Creative Commons, ou ainda sobre questões envolvendo projetos de digitalização com licenciamento aberto que estejam na nossa expertise.”
As respostas foram mistas. Os e-mails escolhidos eram institucionais e individuais e, por vezes, de pessoas da nossa rede de contatos. Os que responderam se dividiram entre aqueles que responderam mensagens automaticamente para limpar a caixa de entrada e os que pareciam interessados e queriam marcar uma conversa.
A partir de então, começamos a conversar com aquelas instituições interessadas. Inicialmente, foram oito: Museu da Cidade de São Paulo, MuseumWeek, Superintendência de Museus da SECEC-RJ e FUNARJ, Fundação Joaquim Nabuco, Biblioteca Mário de Andrade, Acervo Artístico da UFMG, Museu Light da Energia e Centro Cultural do Ministério da Saúde.
O processo geralmente acontecia através de uma chamada de vídeo. No encontro, conversávamos sobre as licenças CC e o seu uso entre GLAMs. Também tiramos muitas dúvidas, sendo as quatro mais frequentes: “1) Como faço para usar uma licença CC?”, “2) Como aplico as licenças CC no site da instituição?”, “3) Como lidar com os direitos autorais de obras do acervo que não estão em Domínio Público?” e, por fim, “4) Como podemos utilizar as licenças CC para o acervo atingir um público maior?”. Esta última questão costumava ser a preocupação latente do momento, devido à COVID-19.
Em alguns encontros mais formais, a reunião tomava forma de apresentação. Mariana apresentava sobre Direito Autoral e o CC, Juliana sobre as licenças e Open GLAM e Giovanna sobre a aplicação prática nos projetos Wikimedia. Dessa maneira, as quatro questões mais frequentes eram respondidas.
Entre os exemplos, um caso interessante foi o encontro através da Superintendência de Museus. Nessa reunião, organizamos uma apresentação com mais de 70 convidados provenientes de diferentes museus do Rio de Janeiro e apresentamos sobre Domínio Público, CC e Wikimedia, tiramos dúvidas dos participantes e respondemos algumas curiosidades, como o caso de obras órfãs.
Também conversamos com o Centro Cultural do Ministério da Saúde para ajudar com algumas questões de atribuição e licenças durante a preparação de uma exposição sobre a Sífilis, para ajudar na conscientização de Doenças Sexualmente Transmissíveis. A exposição foi inaugurada meses depois, no Paço Imperial.
A abordagem que usamos por e-mail foi importante para estabelecer uma relação entre o CCBR e algumas instituições GLAM de maneira independente. A iniciativa ajudou o próprio capítulo a se estabelecer, a fortalecer a sua coordenadoria de Open GLAM e, ainda, colocou o capítulo em contato com outros possíveis parceiros.
Por exemplo, o trabalho da coordenadoria de Open GLAM também excedeu as próprias instituições de patrimônio e alcançou instituições de ensino. O CCBR foi procurado para dar palestras, apresentações e, às vezes, para ajudar alunos. Um exemplo interessante foi com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), que procurou o CCBR para ajudar seus estudantes de Direito a entenderem o Acesso Aberto e as políticas de Open GLAM em um projeto com o Museu de Arte de São Paulo (MASP), uma das instituições mais importantes e populares do país. Ou, então, a nossa participação na 18ª Semana da Biblioteconomia e Ciência da Informação, na Universidade de São Paulo.
Outra iniciativa importante foi a parceria com o Goethe Institut para participar do Abre-te Código, uma hackathon Coding da Vinci. No evento, organizamos um encontro de orientação para embasar o ciclo de Legislação do evento, justamente para representantes de importantes GLAMs brasileiros: Instituto de Estudos Brasileiros, Fundação Bienal, Itaú Cultural e Museu do Ipiranga. Durante o hackathon, também produzimos uma apresentação ao vivo e um vídeo, além de uma brochura com respostas a perguntas frequentes, com base nas reuniões de orientação.
Ao comparar a campanha de e-mail e o evento catalítico do Abre-te Código, vemos dois tipos diferentes de engajamento, que se complementam. O primeiro criou independência para o CCBR e ajudou a fortalecer o nome do capítulo, mas foi um processo longo e exigiu muito de uma organização totalmente voluntária. A segunda gerou importantes recursos audiovisuais ainda em uso e conseguiu atrair mais instituições de uma só vez, mas não gerou engajamento contínuo para o capítulo.
As soluções propostas e as recomendações
Através das atividades em 2020 e 2021, entendemos que, para a mensagem e missão do CCBR atingir mais instituições de memória, é preciso que o capítulo como um todo, mas especialmente a sua coordenadoria de Open GLAM, utilize meios mais institucionais e apropriados para realizar os contatos externos. Também é preciso desenvolver um modelo de parceria, além de um recurso claro e objetivo com as diretrizes Open GLAM, sugestões de como botar em ação um plano de abertura de coleções e o uso de licenças CC em GLAM.
Com relação ao primeiro ponto, principalmente devido aos e-mails enviados no começo de 2020, acreditamos que um dos principais problemas tenha sido o fato de que, apesar de usarmos “ccbrglam”, o endereço era de uma conta genérica. Na época, o site do CCBR também não estava totalmente construído nos moldes de outros capítulos CC. A combinação de ambos os fatores poderia passar uma impressão de casualidade ao grupo.
O segundo problema, a falta de um modelo de parcerias, é uma questão que organizações novas e de pequeno porte passam. Ainda mais uma organização sem fins lucrativos e de carácter voluntário e colaborativo, como o CCBR. Aumentar a quantidade de participantes e melhorar a organização de coordenadorias do capítulo, como a de Open GLAM, pode ajudar nesse quesito. O ideal seria desenvolver um modelo como, por exemplo, o usado pela Wikimedia Deutschland em parcerias de dados.
Por fim, apesar dos conteúdos produzidos durante o Abre-te Código, a falta de um recurso completo sobre Open GLAM em português é uma questão importante. Atualmente, existem algumas publicações acadêmicas do Tainacan e do Wiki Movimento Brasil com um enfoque Wikimedia. Também encontra-se a publicação “Manual de direito autoral para museus, arquivos e bibliotecas”, por Mariana Valente e Bruna Castanheira de Freitas, que tem um capítulo introdutório sobre Open GLAM. Entretanto, uma publicação complexa e oficial sobre Open GLAM, provavelmente no formato de brochura, proveniente do CCBR, ainda se faz necessária para capilarizar e difundir, assim como solidificar, os princípios de Acesso Aberto e Open GLAM para instituições brasileiras.
A implementação
Acreditamos que a implementação das recomendações e sugestões são factíveis, mas dependem principalmente de dois quesitos. Primeiramente, a aceitação de alguns pedidos de financiamento em aberto realizados pelo CCBR nos últimos meses. Isso é importante porque é necessário dispor de recursos para a produção e circulação de brochuras, como a de Open GLAM.
Em segundo lugar, também é preciso que o CCBR trabalhe para fortalecer e aumentar o envolvimento de interessados, com o intuito de estimular a participação de voluntários que queiram se engajar nas coordenadorias do capítulo. Esse ponto é de extrema importância para a saúde e continuidade do CCBR como organização. Nesse sentido, o grupo vem analisando atividades que possam engajar interessados regularmente, como a produção de newsletters recorrentes, inspiradas por aquelas do CC Uruguay, e a realização de uma formação voltada para instituições de ensino brasileiras, já que a ligação entre o CCBR e alguns cursos superiores têm despertado interesse, principalmente na interface entre pesquisa, universidade e patrimônio, como nos exemplos já mencionados da FGV, do MASP e da USP.
Finalmente, é importante destacar como as recomendações aqui compartilhadas podem ser amplamente adotadas por outros capítulos do CC no Sul Global, especialmente na América Latina, particularmente aqueles que têm interesse em desenvolver a área de Open GLAM e ainda não sabiam como dar os primeiros passos. A realidade e o estado das instituições de memória são similares nos países do continente. A lógica de organização, assim como os problemas estruturais e potencialmente as dúvidas das instituições podem ser parecidas. Um estudo sul-americano, até de caráter comparativo, poderia analisar tais condições e se faz extremamente necessário no momento.
A conclusão
Este estudo de caso realizado pelo CCBR é uma análise de iniciativas de contato com instituições GLAM no Brasil, as quais aconteceram a partir de um momento de muita incerteza por conta da pandemia de COVID-19. Apesar da informalidade dos esforços, é clara a vontade e a necessidade do grupo de recorrer a posturas mais formais e permanentes para o estabelecimento e suporte de uma comunidade Open GLAM brasileira.
Tanto a iniciativa por e-mail, quanto a realizada através do evento Abre-te Código, foram tentativas na direção de ajudar a desenvolver a comunidade e consciência Open GLAM no país. Entretanto, a escassa existência de materiais em português sobre Open GLAM, assim como a falta de tempo, recursos e voluntários do CCBR para que essas iniciativas tomassem fôlego, dificultaram a melhor realização do processo. Por outro lado, foi importante para o CCBR entender essas dificuldades, bem como a mentalidade e as complexas realidades das instituições GLAM brasileiras, e aproveitar as oportunidades de eventos e, especialmente, a campanha por e-mail para se fazer presente.
A partir do estudo de caso, ficou mais claro que o objetivo do CCBR é encontrar maneiras de auxiliar, de maneira mais formal, ainda mais GLAMs a usar licenças CC e abrir suas coleções. Para isso, o CCBR espera atrair mais voluntários, produzir os materiais sobre Open GLAM em português e desenvolver uma melhor conexão com a comunidade, desenvolvendo-a interna e externamente, com colegas latinoamericanos e a comunidade global.
Estudo de caso sobre Open GLAM para a chamada aberta realizada e financiada pelo Creative Commons. Mais informações:
1 — Eight open GLAM case studies selected: discover the successful projects and their leaders! (Creative Commons)
2 — Open Call for Open Glam Case Studies (Creative Commons)