Vozes do Commons: contribuindo histórias de vida para o ecossistema do conhecimento livre no Brasil
O Museu da Pessoa é uma instituição cultural brasileira digital que coleta histórias de vida de forma participativa desde 1991. A proposta do museu é transformar a história de vida de toda e qualquer pessoa em patrimônio da humanidade, como meio de conhecimento e conexão entre pessoas, grupos e comunidades. Neste texto, vamos expor os desafios e primeiros resultados de trazer essas “Vozes do Commons” para o ecossistema do conhecimento livre, no contexto da iniciativa GLAM-Wiki do Museu da Pessoa, iniciada em abril de 2021.
A diretora do museu, a historiadora Karen Worcman, disse numa palestra recente no contexto da parceria que “o Museu da Pessoa tem em seu DNA algo próximo do Movimento Wikimedia: tornamos a cadeia produtiva do museu, que envolve acervo, curadores, visitantes, em um processo colaborativo. É sobre construir uma curadoria colaborativa e estar aberto a qualquer visitante”. A fala ocorreu no evento Transbordados, em que se debateu acervos digitais e a organização de conhecimento na América Latina, com uma apresentação pública da iniciativa GLAM-Wiki.
Uma parceria cultural, no entendimento do Wiki Movimento Brasil, envolve quatro etapas, não necessariamente consecutivas: a ratificação pública da parceria, a avaliação da infraestrutura jurídica, a avaliação e o carregamento em massa e a difusão dos conhecimentos. Aqui, falaremos de como essas etapas ocorreram ou estão planejadas para acontecer no caso do Museu da Pessoa.
Ratificação pública da parceria
O primeiro passo dessa parceria foi a ratificação da iniciativa GLAM-Wiki do Museu da Pessoa em abril de 2021 com uma nota pública de parceria, disponível no Wikimedia Commons. Nela, firmamos a intenção de colaborar para a disponibilização do acervo nas plataformas Wikimedia associada à realização de atividades para a sua difusão.
Na sequência, iniciamos o processo de verificação VRT (antigo OTRS), com a emissão de um ticket específico para o Museu da Pessoa. Nesse processo, o próprio Museu da Pessoa solicitou via e-mail a um corpo voluntário VRT a validação da permissão da parceria nos termos descritos na licença do Wikimedia Commons. A verificação certifica que de fato o acervo disponibilizado nas plataformas Wikimedia foi cedido pelo próprio Museu da Pessoa, e não por terceiros fora do contexto da parceria, o que oferece segurança jurídica para a utilização das obras sob os termos indicados em suas respectivas páginas.
Ainda no processo de preparação da estrutura on wiki para o GLAM, o WMB criou uma página com o template tGLAM para o Museu da Pessoa, na qual centralizamos publicamente as documentações e atividades da parceria, com um convite aberto à participação da comunidade de forma mais ampla. Além de ter uma função de organização das etapas do GLAM, a página também serve como um portal comunitário, no qual é possível acompanhar o andamento dos carregamentos e das atividades associadas e se envolver com elas. A ideia é que a página se desenvolva conforme o acervo vai sendo disponibilizado.
Para controle, criamos um item no Wikidata para o GLAM do Museu da Pessoa, a ser adicionado em todos os itens do acervo no Wikidata, e uma categoria controle no Wikimedia Commons. Para acompanhamento de estatísticas sobre os carregamentos, o Museu da Pessoa foi inserido no GLAM Wiki Dashboard, uma plataforma desenvolvida pela Wikimedia Israel que permite visualizações rápidas de dados sobre GLAMs, como número de visualizações e de usos dos itens nas plataformas Wikimedia, por exemplo.
No início de 2021, o Wiki Movimento Brasil desenvolveu um tutorial para GLAMs em português detalhando o passo a passo das etapas mencionadas acima. Recomendamos especialmente para outras instituições que queiram entender como começar um GLAM na prática.
Avaliação da infraestrutura jurídica
A etapa de avaliação da infraestrutura jurídica ocorre geralmente no início da parceria e é fundamental para que tanto a instituição cultural quanto a comunidade Wikimedia e terceiros tenham a garantia de que o material a ser disponibilizado é compatível com licenças livres, sem violação de direitos autorais.
Há 30 anos, o Museu da Pessoa recebe relatos de vidas em diferentes formatos de mídia. Ainda nos anos 1990, o museu publicava histórias que recebiam por e-mail de colaboradores. Hoje, o site do museu abriga uma plataforma que permite a submissão de narrativas em texto e multimídia. O Museu da Pessoa também realiza projetos de coleta de memória oral, em conexão a comunidades locais. Essa longa trajetória acompanhou a própria evolução da web 2.0, o que fez com que a questão do licenciamento dos relatos não fosse padronizada desde o início da construção coletiva do acervo. Por isso, durante a avaliação da infraestrutura jurídica, foi necessário compreender os usos variados de licenças em tipos diversos de mídias, além da própria licença do site.
A avaliação foi realizada em diálogo com a equipe do Museu da Pessoa, pessoas vinculadas ao Creative Commons Brasil e ativistas do conhecimento livre. A partir dessa análise, hoje temos a segurança jurídica para realizar o carregamento de textos do acervo. Já o carregamento de mídias dependerá de uma avaliação mais detalhada, em curso.
Avaliação e carregamento em massa
Com a segurança de que os itens do acervo são compatíveis com a licença CC BY-SA 4.0, iniciamos a etapa de avaliação e carregamento em massa do acervo textual do museu.
Um desafio inerente desta parceria é compreender como modelar histórias de vida no Wikidata, o banco de dados web semântico dos projetos Wikimedia. Como Karen Worcman comentou durante o evento Transbordados, “a história de vida de uma pessoa não é o que aconteceu com ela, mas o que ela narra sobre si”. A memória oral impõe desafios ontológicos a serem desbravados pela parceria GLAM Wiki. Por enquanto, a vinculação direta do relato textual com o item da respectiva pessoa biografada no acervo do museu serve como um primeiro passo nessa direção.
Para isso, foram criadas duas novas propriedades para o Museu da Pessoa no Wikidata: história no Museu da Pessoa (P10032) e identificador de pessoa no Museu da Pessoa (P10023), com aprovação da comunidade Wikidata. A primeira direciona para um arquivo do Wikimedia Commons de uma história no Museu da Pessoa sobre ou pelo sujeito deste item, enquanto que a segunda serve como identificador único de uma pessoa no site do Museu da Pessoa.
Tanto os textos dos relatos quanto os seus respectivos metadados foram extraídos diretamente do site do Museu da Pessoa. Somam 11.597 arquivos em formato PDF. O carregamento desses documentos é geralmente realizado via Pattypan, mas, como a ferramenta estava fora do ar, foi necessário adaptar o recurso Pywikibot para a realização da tarefa. O carregamento do lote de metadados foi feito com a ferramenta QuickStatements. As ferramentas mencionadas são tecnologias livres.
O carregamento pode ser acompanhado pela página tGLAM da parceria. As milhares de histórias de vida, uma vez inseridas no Wikidata, permitem visualizações interessantes, geradas pelo Wikidata Query Service.
Difusão dos conhecimentos
Tão importante quanto as etapas de ordem técnica é o planejamento para a difusão do acervo disponibilizado nas plataformas Wikimedia, pois é por onde as pessoas podem acessar e compartilhar os seus conhecimentos. Uma das estratégias possíveis é a criação ou a melhoria de verbetes na Wikipédia associada ao acervo da instituição, com direcionamentos para os arquivos multimídia. O caso do Museu da Pessoa é bastante particular em uma abordagem como essa, pois desafia como o conhecimento é entendido pelas definições da enciclopédia.
O trabalho do Museu da Pessoa se sustenta há trinta anos sob a premissa de que a história de todos tem relevância para a construção de uma memória social colaborativa e que, consequentemente, todos têm o direito de eternizar a sua própria história para torná-la uma fonte de conhecimento e de conexão. A Wikipédia se propõe a disponibilizar a soma de todo o conhecimento humano de forma livre e gratuita, o que a um primeiro momento poderia parecer compatível com a motivação do Museu da Pessoa. Entretanto, a Wikipédia se sustentou, também colaborativamente, ao longo dos últimos vinte anos pelo estabelecimento de orientações editoriais básicas, como a criação de critérios de notoriedade que definem o que é relevante ou não para o projeto e a referenciação e verificação em fontes confiáveis das informações adicionadas aos verbetes. A princípio, pessoas comuns não têm o seu espaço garantido na Wikipédia, a não ser que tenham realizado algum feito de destaque e tal ato tenha sido documentado em fontes confiáveis, geralmente textuais, como artigos acadêmicos e jornalísticos. A partir do momento em que o Museu da Pessoa, enquanto uma instituição responsável por salvaguardar uma memória social, aceita contribuições de pessoa falando de si mesma ou de terceiras, entramos em uma discussão sobre como os modelos tradicionais de documentação que sustentam a Wikipédia e os projetos Wikimedia de forma mais geral não dão conta da complexidade e da diversidade do conhecimento humano integrado em nossas vidas, colocando em xeque o que é, de fato, a “soma de todo o conhecimento humano”.
Algumas personalidades que tiveram suas vidas narradas no Museu da Pessoa são notórias o suficiente para estarem na Wikipédia em português, conforme é possível verificar na visualização da query abaixo. Dos mais de 11 mil relatos, 324 já têm verbetes, sendo que desses, 146 têm também imagens no Wikimedia Commons:
O acervo do museu conta histórias fantásticas de pessoas comuns, como Pequenita, a única moradora de sua cidade natal que foi inundada no contexto da construção da Barragem de Sobradinho. Pequenita, cuja história foi registrada pelo Museu da Pessoa em 2007, ganhou recentemente um verbete na Wikipédia em português, baseado nesse trabalho. Pretendemos organizar maratonas de edição com o Museu da Pessoa em 2022 para trabalhar verbetes de biografias e outros conteúdos gerais relacionados ao acervo e às práticas do museu. Também está em nosso horizonte explorar as potencialidades do compartilhamento de arquivos multimídia do Museu da Pessoa, a fim de difundir outras formas de expressão do conhecimento para além do formato textual.
A inserção do acervo do Museu da Pessoa nas plataformas Wikimedia e suas atividades de difusão fazem parte de uma metodologia participativa de baixo custo com alto impacto potencial que Karen Worcman chama de tecnologia social da memória. Durante o evento Transbordados, ela explica: “Essa nossa tecnologia social da memória é baseada nessa relação entre o eu, que é a minha memória pessoal; com o nós, que é a nossa memória coletiva de grupos, como famílias, comunidades, territórios e países; e a nossa relação para a construção de um conhecimento para o resto da sociedade. Ela é baseada no tripé de construir, organizar e socializar histórias: não adianta só ouvirmos e contarmos histórias de vida se não as tornamos o patrimônio de um museu e se não as socializamos de volta para o público.”
Texto: Érica Azzellini e João Alexandre Peschanski
Imagens: Éder Porto e Lucas Belo
