A (dramática) história da nossa prima da cidade: a Educação Digital

Raquel Thomé
Creditas Academy
Published in
6 min readJan 11, 2021
Foto de Zen Chung no Pexels

O ano de 2020 começava, o carnaval acontecia, acabava e as atividades pareciam voltar ao normal. Mas, não foi bem assim que aconteceu.

As atividades educacionais — de toda e qualquer parte — foram surpreendidas com o grande monstro da educação à distância, também carinhosamente chamado de EAD. Não parecia ser um acontecimento democrático, capaz de escolhas e meias adaptações. O monstro havia chegado e muitos de nós precisávamos aprender a lidar com ele, que parecia assustador. Mas como de costume em muitas narrativas cinematográficas, o monstro nem era tão malvado assim. Será?

E foi aí que começou a nossa história com a educação digital, passando por muitos sentimentos além do drama, que nos fizeram rir e chorar. Nossa narrativa é pouco romântica e bem mais real do que se esperava. Olhar para a educação digital nos fez ter que voltar alguns passos atrás, como se tivéssemos chegado de viagem numa nova cidade, mas sem malas e sem mapa.

Como pensar numa educação que exige conhecimentos tecnológicos prévios e artifícios específicos para poder acontecer? Nesses passos para trás fomos descobrindo o quanto a pessoa que ensina também precisava reaprender a ensinar neste novo universo.

Tecnologia e Cultura

A tecnologia parecia ser um recurso de apoio à nossa volta, com seus materiais e aparatos que facilitam e ou dificultam a vida de alguns. Mas, o que me pareceu ficar muito evidente é que não havíamos percebido que ela já era parte da nossa cultura, influenciando a maneira que vivemos, que compramos, nos comunicamos e até como pensamos. Nos apropriamos tão bem desta cultura tecnológica que ela é parte influenciadora das nossas linguagens e um apoio muito presente nos nossos diálogos. Talvez nós estivéssemos muito mais íntimos dela do que imaginávamos. Todavia, façamos uma pequena pausa dramática nesta última frase para pensarmos em um mero detalhe de três letras: nós. De quem falamos quando utilizamos a palavra nós?

Retomamos a partir da pausa dramática. Nós somos muitos e partimos de algum lugar social e econômico para poder referenciar todo e qualquer assunto. De qual ser social falamos ao dizer que a tecnologia já fazia parte de nossas vidas?

Este assunto me faz lembrar a nada tranquila trajetória de Daniel no filme Eu, Daniel Blake, do diretor branco e britânico (para compreendermos o ser social de quem narra) Ken Loach. Daniel é um homem branco de 59 anos, que precisa de auxílio do governo por ter sido afastado do trabalho ao sofrer um ataque cardíaco e ser proibido de voltar a exercer qualquer atividade regular remunerada. Pobre Daniel. Ele se vê preso num caminho repleto de não resoluções, que fazem com que ele tenha que saber mexer em um computador, fazer cadastro pela internet e fazer solicitações online. A grande questão aqui é que ele tem tudo isto à sua volta, pode acessar o computador da biblioteca municipal e finalmente conseguir fazer o que precisa, porém, Daniel é um analfabeto digital. E é a partir deste momento que o homem independente se torna a figura de uma criança, que depende da boa vontade de muitas pessoas e da própria capacidade de resiliência em conseguir superar dificuldades, para poder ter uma vida mais tranquila e acesso àquilo que tem direito como cidadão. Sem citarmos o mero detalhe de que Daniel é europeu, não vive em um país em desenvolvimento e não sofre com o racismo estrutural, se a vida dele lá é difícil, imagine em outras realidades muito diferentes dessa.

Assim, voltando ao ponto que falamos anteriormente. Neste lugar de total exclusão, a tal da palavra nós não se aplica.

Quem ensina?

A educação digital é dependente de recursos materiais e subjetivos para que possa ser efetiva. Quando digo efetiva, é sobre um bom diálogo, uma boa troca, um acompanhamento e acolhimento de aprendizado contínuo e necessário para um caminho promissor de quem aprende e também de quem ensina. Ao falarmos em acessibilidade precisamos compreender a enorme diversidade de corpos e status que o nosso meio comporta. Será que estamos, de fato, observando a nossa volta? E, se estamos mesmo, será que fazemos as perguntas mais assertivas?

Combatendo a aula expositiva, pensamos que é preciso horizontalizar cada vez mais as relações entre professor e aluno, me pergunto se conseguimos assumir que como educadores digitais nos vemos numa sequência de obstáculos para apresentar um bom espetáculo. As inúmeras possibilidades de interação dentro do mundo digital podem ter nos causado um certo deslumbre de tudo que é possível fazer quando estamos diante de um computador, quase como um fetiche tecnológico. E, compreender que a nossa fetichização com relação aos recursos digitais de interação não pode ser um obstáculo no caminho de aprendizagem, pois os recursos materiais podem ser bem precários, mas a capacidade de aprendizado dentro destes recursos pode ser enorme e de extrema riqueza de detalhes.

Para traçar um caminho de descoberta, em que a pessoa que educa encontra lugares preciosos de troca e sabe que está alcançando a pessoa que aprende, dentro de todas as limitações que ambas as partes possam vir a ter, podemos propor um mero exercício: trocar de lugar. A alteridade pode ir levando o ser aprendente a ser quem guia a nossa jornada de aprendizagem, dando pistas de atitudes passíveis de transformação na vida dessas duas pessoas. Este exercício pode nos levar a encontros menos impositivos e mais adaptáveis àquilo que é possível acontecer. A descentralização da aprendizagem, digo, tirar o ser que ensina do lugar detentor de todas as sabedorias e colocá-lo na horizontalidade do ser que também aprende, faz com que a educação digital ganhe muitas possibilidades de encontro e conexão que nunca imaginamos. Podendo perder o lugar do fetiche na educação digital e encontrando mais conexão com os reais propósitos.

Acessibilidade para quem?

Quando falamos de acessibilidade na educação digital já surge a primeira ideia de que este assunto é para um grupo específico, como as pessoas com deficiência. Descartamos completamente que possa existir a impossibilidade de lidar com muitas coisas, como se as pessoas consideradas sem deficiência tivessem a mesma maneira e capacidade de ouvir, ver, se locomover, compreender, acessar (etc.) e aprender. Ao falarmos de acessibilidade na educação digital, me sinto voltando ao marco zero das questões educativas (que me parecem nada ter a ver com tecnologia).

Olhar para a educação digital como se ela fosse a prima da cidade da educação presencial, me parece uma grande auto-armadilha que estamos montando. Como se tivéssemos que inventar a maneira mais legal, transgressora, diferenciada e descolada de ensinar diante de um cenário que precisamos perguntar: quem é você aí do outro lado?

Difícil apresentar um espetáculo sem conhecer seu público, sem poder escutá-lo e sem saber se ele está de fato gostando. Mas, o que parece mais difícil é ter que assistir a um espetáculo quando você ouve as falas cortadas (porque a sua internet não funciona), não consegue fazer leitura labial porque a imagem está em baixa qualidade, ou não tem como dizer aos atores que você não entendeu o começo da história e precisaria que alguém te contasse para que você tivesse, de fato, vontade de assistir até o final. Será que educadores digitais estão conseguindo ouvir e cativar seu público?

Na verdade mesmo, a nossa educação me parece precisar de cuidados ainda muito primários como conversas frequentes, escuta e vontade de transformação. E sinto que a nossa prima da cidade, a educação digital, está aprendendo tanto quanto a nossa prima do campo, a educação presencial.

Referências

COLACIQUE, Rachel Capucho; e AMARAL, Mirian Maia. PEDAGOGIA SURDA E VISUALIDADES: RASTROS CULTURAIS IMAGÉTICOS INDICADORES DE APRENDIZAGEM NA CIBERCULTURA. Revista Docência e Cibercultura, v. 4, n. 1, jan-abr, 2020, p. 142–173. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2020.50152

LÉVY, Pierre. A máquina universo: criação, cognição e cultura informática. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

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