Há quem diga que perdendo é que se ganha

Abner Ferreira
Creio, Logo Leio!
Published in
4 min readMay 21, 2020

Levamos sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a vida dele se manifeste em nosso corpo (I Coríntios 4.10)

Bastian Baltasar Bux — um rapazinho gordo, rejeitado pelos colegas — que um dia teve um encontro com uma narrativa que mudaria sua história para sempre.

O livro ‘A História Sem Fim’, autoria de Michel Ende, desenvolve-se a partir da leitura que o jovem Bastian faz de um livro que carrega esse mesmo título. Você lê a história enquanto acompanha outra pessoa que está fazendo o mesmo, até que a realidade da personagem e do livro vão se entrelaçando cada vez mais.

Não posso entregar todo o enredo, mas é válido destacar um trecho que é ponto de partida para este texto:

“Escute-me, Bastian Baltasar Bux — disse ele [Yor, o minerador] — Gosto de falar pouco. Prefiro o silêncio. Mas, por esta vez, falarei. Você procura as Águas da Vida. Queria ser capaz de amar, para poder voltar ao seu mundo. Amar… é muito fácil dizê-lo! As Águas da Vida vão lhe perguntar: quem? Não se pode amar simplesmente, em geral, e de qualquer maneira. Mas você se esqueceu de tudo exceto do seu nome. E se não for capaz de responder, não poderá beber. Por isto, só um sonho esquecido que você reencontre aqui poderá ajudá-lo, uma imagem que o conduza até a fonte. Mas para isso terá de esquecer a última coisa que ainda lhe resta: você mesmo. E isso implica um trabalho árduo e paciente. Não se esqueça de minhas palavras, pois não voltarei a pronunciá-las.” (Ende, 2016, p. 373)

Sou incapaz de num único texto explorar toda a riqueza daquilo que está sendo dito acima, mas o ponto que anseio tratar aqui é: Bastian teria de esquecer de si para beber das Águas da Vida. A narrativa que mudaria toda a sua vida demandava um sacrifício; tal sacrifício representava um trabalho árduo e paciente, com diz o célebre Yor.

Mas afinal, o que significaria esquecer a si mesmo? É descuido de si? É estimar os outros e não a si? Se perdermos a nós mesmos, o que teremos? O que será que as palavras de Yor podem nos significar?

Certa vez, um ilustre homem também disse: Quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á (Mt 16.25). Será que a chave para Bastian ter seu encontro com as Águas da Vida consiste em entregar sua própria vida para um outro ser? Para assim, achá-la? Que tipo de paradoxo é esse? Perdendo é que se acha? Minha cabeça não é capaz de assimilar isso, parece que se encontra além de minha compreensão e, de fato, está.

Blaise Pascal, seguindo Agostinho, aponta o enigma ou o mistério do eu:

“O homem está além do homem (…) Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois para vós mesmo. Humilhai-vos, razão impotente! Calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi de vosso Senhor vossa condição verdadeira que ignorais”. (Pascal, 2015, p. 74.)

“Ouvi de vosso Senhor vossa condição verdadeira que ignorais”. Toda a produção de saber nos aponta que “O homem está além do homem”. Por algum motivo, não somos capazes de apreender a realidade em nossas mãos, sempre algo nos escapa e escorre por nossas mãos como vapor. Desta feita, como seríamos capazes de encontrar sozinhos a verdade acerca de nossas vidas? Afinal, como vamos responder quem nós somos?

Para tais questões, é preferível ouvir o que o Criador tem a nos dizer. No fim, não somos a fonte onde encontraremos a resposta para nossas grandes questões. Mas e se eu meditar como Buda? Ou curar pessoas como Jesus? Ou quem sabe mudar minha nação como Ghandi? No fim, tudo isso se provará como vaidade de vaidades, como diz o pregador, tudo é vaidade.

E a única chance que temos de fazer de nossa existência algo mais do que vapor, é obedecendo aquilo que diz a canção: “deixe Cristo te falar quem você é…”

Quem sabe, como Bastian, tenhamos o privilégio de um dia provar das Águas da Vida.

Quem sabe, esquecer de nós mesmos seja o melhor que pode nos acontecer.

Quem sabe, o mundo seja mais do que podemos ver e tocar.

Quem sabe, um dia encontremos a narrativa que nos mudará por completo.

Quem sabe, quem sabe, quem sabe…

Deus o sabe.

Quadro de Rembrandt, intitulado: Filósofo em meditação (1632).

Soli Deo Gloria

--

--

Abner Ferreira
Creio, Logo Leio!

Para nós, há apenas o tentar. O resto, não é da nossa conta.