Humilha-te a ti mesmo

Mikaeverson Duarte
Creio, Logo Leio!
Published in
5 min readApr 30, 2020

É bem provável que você já tenha visto ou vivenciado alguma situação em que a sua fé foi desprestigiada ou até mesmo desrespeitada. Talvez você também já tenha sido ignorado e percebeu que aquilo que você disse não foi ouvido devido a sua crença, e a pobre justificativa que lhe foi apresentada reivindicava pra si uma neutralidade racional ilusória a qual desconsiderava qualquer discurso religioso.

São muitos os casos por mim vividos, e acredito que por você também, nos quais pude ouvir falas que intentavam de algum modo descreditar minha fé, a fé cristã. Desde as conversas de rua até dentro das salas de aula na universidade, não foram poucas as vezes que sem nenhuma oportunidade de resposta, não só o modo como interpreto a realidade mas eu mesmo fui reduzido a categorias intelectuais inferiores.

Certa vez, enquanto eu participava de uma aula de sociologia e sentia-me ofendido diretamente pelo professor, fui tomado por um ímpeto, não corajoso com um tom de heroísmo mas humilhado, e calado não respondi tal ofensa. Eu até poderia ter pensado argumentos lógicos para refuta-lo, como já havia feito outras vezes, mas naquele momento o meu mais alto grito foi o silêncio.

A melhor palavra que expressaria minha condição e contemplaria o mais íntimo sentimento não seria outra senão, humilhação. E humilhado, usufruindo da “intelecção mais profunda que a mente humana pode realizar”, orei.

Compreendendo a raiz conceitual da inteligência humilhada

Meu propósito nesse texto é explorar apenas alguns poucos aspectos do conceito elucidado pelo pastor e filósofo Jonas Madureira em seu livro “Inteligência humilhada”. Nessa obra, o autor propõe um conceito epistemológico, isto é, que se refere a teoria do conhecimento, pautado na condição de humilhação inerente ao ser humano.

“O homem humilde se ajoelha perante toda verdade” Ernest Hello

Para ele, o conflito existente entre Fé e Razão se desfaz quando encontra o reconhecimento da condição precária que caracteriza a mente humana. Haja vista que “a nossa inteligência já está sob a condição de humilhação, quer sejamos concientes dela, quer não.” Afinal, somos seres humanos criados e, por consequência disso, finitos, e esse fato trás implicações limitantes para o homem como um todo.

Para tanto, é válido ressaltar ainda os efeitos noéticos (intelectuais) da queda. Além da própria condição intrínseca de criatura que já nos delimita, o ser humano carrega a depravação advinda do pecado a qual interfere não somente nos âmbitos material e volitivo do ser, mas também em sua faculdade intelectual. O que implica dizer; para nós é impossível conhecer, seja qual for o alvo conhecido, sem que antes nos seja revelado. Como bem disse Anselmo: “Miserável sorte a do homem quando perdeu aquilo para o qual foi feito. Dura e cruel queda”.

A revelação divina e o verdadeiro autoconhecimento

Essa raiz conceitual anteriormente mencionada nos conduz a pelo menos duas perguntas fundamentais; (1) Quem é a fonte da revelação? e (2) Como podemos nos conhecer?

A fonte da revelação é divina e necessita de mediação. “A própria infinitude de Deus não nos permite conceber esse tipo de conhecimento, já que ele, por sua própria natureza, não pode ser conhecido de forma exaustiva.” Trata-se de um Deus eterno todo-poderoso e o conhecer a ele é uma experiência que nos humilha. Por isso, o ponto de partida para esse conhecimento é o temor e a humildade.

Além disso, “não bastasse a irredutível superioridade de Deus, dependemos também do conhecimento que ele tem de nós para nos conhecermos. Qualquer conhecimento verdadeiro que possamos ter de nós mesmos será sempre fruto da revelação, e não de mera inteligência.” Sabendo disso, sabiamente disse Santo Agostinho:

“Que eu te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça tal como sou conhecido por ti.”

Mas e aquela história do “conhece-te a ti mesmo”? O bispo de hipona nos leva a pensar que não se pode conhecer de modo adequado a si mesmo sem o conhecimento adequado de Deus. Do mesmo modo torna-se impossível conhecer verdadeiramente a Deus e continuar sendo um ignorante de si mesmo.

Nesse sentido, é como se estivéssemos imersos na tolice e na alienação até que fôssemos libertos. A grande questão então seria; como alcançar a libertação?

A libertação da tolice e o silêncio do triunfo

O famoso bordão filosófico “conhece-te a ti mesmo” pressupõe uma busca em si próprio da libertação da tolice. Dessa maneira, a autorreflexão tornaria qualquer um livre para conhecer a verdade. Mas como bem já vimos, a inteligência humilhada fruto da ação divina em nós reconhece a plena insuficiência, bem como a não-capacidade do tolo de se libertar.

“Em contraste com o platônico, o cristão acredita que, ao se humilhar diante de um poder superior que irrompe o coração do homem, o tolo é liberto de sua maior prisão: a autorreferência. O cristão sabe que não adianta tentar persuadir aquele que é prisioneiro de si mesmo. Por experiência, o cristão reconhece que somente um poder infinitamente superior poderá convencer o tolo de sua tolice.” (p.62)

Enquanto permaneci calado naquela sala de aula lembrei-me da tolice. Lembrei-me que é preciso sabedoria pra discernir quando deve-se aceitar a humilhação e oferecer a outra face. Lembrei-me que não se pode lançar pérolas aos porcos. Lembrei-me que não posso reduzir o evangelho a um mero ideal de vitória. Lembrei-me acima de tudo do sacrifício vicário de Jesus Cristo. Pois somente o Espírito Santo de Deus pode convencer o coração pedregoso de sua tolice e perversidade.

Devemos lembrar que como uma ovelha muda indo de encontro ao matadouro Jesus calou-se e entregou-se. O Deus encarnado, primogênito sobre toda a criação, foi rejeitado e crucificado. Ainda assim, ele não reivindicou o fato de ser Deus e humilhou-se! (Fp 2.8)

Por isso, para concluir esse texto, faço questão de ecoar as verdades eternas proferidas pelo apóstolo Paulo: “tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5).

E não esqueçam que antes do silêncio ensurdecedor na cruz do calvário veio o brado triunfante da consumação. Esse silêncio causado pela dor do desamparo foi levemente suportado pela alegria vindoura que estava proposta (Hb 12.2).

Jesus Cristo, Salvador e Senhor nosso, venceu a morte e ressurgiu. E agora, como quem repousa na paz que excede todo entendimento, aguardamos cheios de esperança o seu retorno glorioso.

Portanto, aos tolos que somos fica o breve recado; humilha-te a ti mesmo antes que a sua língua confesse e seus joelhos se curvem contra sua vontade diante do Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores.

Referência:

Madureira, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

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