Sancho Pança e o cristão moderno

oramon_souza
Creio, Logo Leio!
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3 min readMay 8, 2020

Um dos personagens mais marcantes da literatura universal é o fiel escudeiro de Dom Quixote de la Mancha, Sancho Pança. Muito embora o livro seja sobre um senhor de meia idade que enlouqueceu lendo livros sobre cavalaria a ponto de se autoproclamar cavaleiro andante, em muitos momentos o protagonismo é roubado pela figura excêntrica de Sancho que convencido pela promessa de ganhar uma ilha, abandona esposa e filha para seguir Dom Quixote pelas suas andanças. O interessante nessa história é que Sancho em vários momentos percebia e convencia-se da loucura do seu amo, inclusive o alertando algumas vezes, contudo parece que ele preferia acreditar no que Dom Quixote falava e não no que ele via. Ainda assim, em alguns momentos a lucidez visitava Sancho, pena fosse uma visita bem rapidinha: “O melhor e mais acertado, na minha humilde opinião, seria voltarmos à nossa terra, agora que é o tempo da ceifa e cuidarmos da nossa fazenda…” (Sancho à Dom Quixote) Mas afinal o que mantinha Sancho apegado à Dom Quixote? O que o impedia de voltar para sua casa? A promessa da ilha, o desejo de ser um grande governador, era isso que fazia o escudeiro seguir um cavaleiro louco.

Após um tempo Sancho consegue a ilha, por outros meios, e se bem que nem era uma ilha, mas a cegueira foi tanta que ele nem questionou, passou apenas 10 dias no governo até perceber que não era isso o que ele de fato queria, aquilo não o satisfez: “Em suma, durante esse tempo tateei os encargos e obrigações que o governo traz consigo e achei, por minha conta, que os não podem suportar meus ombros, nem são pesos de minhas costelas, ou flechas de minha aljava. Assim, antes que o governo desse comigo no chão, dei eu ao chão com o governo…”

Após essa experiência, o desejo de Sancho era retornar à vida simples que vivia, e uma das cenas mais belas do livro é quando de retorno a sua casa ele avista a aldeia onde morava e diz: “Abre os olhos, desejada pátria, e olha que a ti volta Sancho Pança, teu filho, se não muito rico, pelo menos bem açoitado. Abre os braços e recebe também teu filho Dom Quixote, que se vem vencido por braços alheios, vem vencedor de sim mesmo; pois segundo ele me disse, é a maior vitória que se possa desejar…” Tomara que Sancho tenha aprendido a lição, e que lição! Melhor que governar uma cidade é governar a sim mesmo.

Mas onde está a semelhança dele com o cristão moderno? São muitas, a começar por cavaleiros andantes loucos com promessas absurdas, apelando para a emoção, fazem prosélitos que preferem acreditar nas falácias de uma teologia da prosperidade do que nas escrituras. Assim novos Sanchos vão nascendo, seguindo tais cavaleiros, deixando sua família a mercê do acaso, vendem bens, compram água do Jordão, andam no vale de sal, tocam no manto sagrado, visitam o novo templo de Salomão, queimam tudo em uma fogueira por que querem governar uma ilha, e muitos acham que ganharam até tal ilha, e semelhante a Sancho se esquecem de pelo menos questionar onde está a água, esses bebem águas turvas enquanto desprezam fontes cristalinas. Precisam aprender que existe uma pátria que os espera, lá, somente lá, satisfarão todos os anseios, lá é um lar, um retorno à Pátria amada, onde reinaremos em Cristo, vencedores e vencidos, sim! Pois foi vencido e venceu quem negou a si mesmo.

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oramon_souza
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Um caminhante em busca da simplicidade, refletindo sobre música, literatura e vida com Deus.