II - Hell is other people

Mas isso vocês já sabem.

Devo pedir desculpas pela demora em continuar esta narrativa. Estava sem vontade alguma de escrever; além disso, não assumi compromisso algum com vocês, e não ganho a vida fazendo isso (como se fosse possível ganhar dinheiro escrevendo num país de gente que não lê).

Sem mais delongas, vem comigo.

Teorema — Pier Paolo Pasolini.

Assim como anteriormente, vou começar pela introdução do plano de fundo. E… surpresa! É igual ao anterior, não muda nada. Só preciso citar porque será importante na condução da história.

Estou falando da cidade Q, que faz divisa com a megalópole conhecida como minha cidade de origem. Como acontece com todos os berços de grandes civilizações, existe uma rivalidade entre a minha cidade e a cidade Q, nos moldes de Rio-São Paulo, Nova York-Londres, etc. Neste caso, elas competem pra ver qual produz mais festa sertaneja fajuta e briga de político em praça de igreja. Acredite: é um páreo duro.

Vamos a algumas informações a respeito da cidade Q (de acordo com a Wikipedia):

Área: 112,689 km².

População: 7.044 hab. (Censo IBGE/2010).

Densidade: 62,51 hab./km².

Altitude: 785 m.

Clima: subtropical Cfa.

Fuso horário: UTC-3.

Como deu pra perceber, é mais um cenário do poema de Drummond. Mas com uma importante diferença para a nossa história: a população jovem que lá residia me fazia preferir descer pro inferno diariamente do que levantar da cama para ir à escola — é sério: se o inferno existisse, eu realmente teria preferido descer para tomar chá com o diabo do que conviver com aquela gente. Não tenho dúvidas de que o diabo deve ter anos de bagagem cultural para conversar; não faltaria assunto. Com essa gente faltava. Ainda falta. Sempre vai faltar. Ainda bem.

É óbvio que o ano era 2007.

Antes de começar (eu tô enrolando, né? Calma, são muitos detalhes, e preciso garantir que você não perca nada da experiência e consiga se situar no tempo-espaço), mais uma curiosidade: no interior, estudar em colégio particular é um símbolo de status.

É diferente do que vemos nas grandes capitais, onde um colégio particular é apenas a escolha óbvia de quem quer um futuro promissor para os filhos, já planejando o ingresso do pimpolho em uma universidade pública (tomada pela doutrinação comunista da esquerda parasitária, claro, mas que ainda assim forma os melhores engenheiros e é bom poder falar pros amigos que o filhote entrou lá), um começo de carreira promissor, entre outros; basta pagar R$4000,00 (em média) de mensalidade e isso já está (quase) garantido. No interior, não: qualquer milão já paga um colégio privado — que geralmente se resume a uma casa com uma ampla área construída, e você aprende trigonometria onde antes era a sala de estar. Mas o mais importante: a escola paga te divide do “resto” da sociedade, afinal de contas seus pais podem pagar para você estudar.

Vamos agora fazer a composição de todas estas informações supracitadas na forma de uma simples equação:

Agora vamos estudar um pouquinho esse troço: Estamos falando de uma escola de ensino médio, logo, não tem como a quantidade de adolescentes assumir valor zero, por construção; estamos no interior, então a mentalidade de interiorano é necessariamente positiva. Desta forma, é fácil ver que você só evita o inferno se a (falsa) sensação de superioridade for igual a zero. Porém, pelo que já foi exposto, não tem como essa bosta ser zero porque o meio a força a ser positiva. Para quem é de humanas: estou tentando explicar que não tinha como escapar da desgraça que foi o meu colegial.

Agora vem a parte que vocês estavam aguardando ansiosamente: E eu no meio disso tudo? Onde estaria nosso (anti) herói? Da última vez em que o vimos ele estava aprendendo inglês e estudando coisinhas, e ainda era apenas uma criança antissocial e rabugenta. Será que tá tudo bem com ele?

Eu deixo vocês adivinharem quem sou eu na foto.

Calma, gente; só tivemos um salto temporal, isso aqui já é o Ensino Médio; e eu tava lá; sendo tratado feito lixo, nada de mais. É claro que eu era bolsista. E claro que eu não pagava nada de mensalidade (olhando pra trás, não teria pagado nem em outra circunstância). Não porque meus pais não conseguissem, mas porque eu prestei a provinha de bolsa e passei na frente de todo mundo com folga considerável (não que fosse um desafio, dado o lugar e o contexto; vocês já devem ter imaginado isso, ou que eu diria isso).

Eu. Era. Odiado.

Alguns pais da cidade Q ligaram na escola pedindo ao menos um desconto para os filhos, porque “onde já se viu ter um guri na sala que não pagava nada pra estudar?” Sim, senhores, o conceito de bolsa de estudos foi algo que assustou os nativos à primeira vista. Foi um baque, um choque, uma abominação. E quem seria o melhor exemplo para engendrar tamanha heresia do que a própria abominação em carne, osso, e acne?

“Tá, tá bom, já entendi, mas o que tem a ver a cidade Q? Por que pegavam tanto no seu pé? As pessoas da sua cidade não eram cretinas, também?”

Vocês são apressados demais. Sim, as pessoas a minha cidade que estavam matriculadas no famigerado colégio eram odiosas na mesma magnitude; todos lá são elementos gerados a partir do mesmo subespaço, sem sombra de dúvida (pessoal de humanas: tudo farinha do mesmo saco).

O que eu estou tentando dizer, mas que as perguntas que surgem dentro da sua mente enquanto você lê não permitem que eu explicite, é: eu pegava o ônibus que vinha de Q para chegar no colégio. Acabava tendo um contato de certa forma direto com os obtusinhos do outro buraco sem perspectiva. E era infernal.

Os primatas que sentavam no fundão gritavam e assobiavam logo que eu entrava no ônibus. Me chamavam de “meu amô”, “minha querida”, e “fofa”. As outras pessoas não respondiam ao “bom dia, tudo bem?” quando eu pedia para me sentar ao lado no caminho até a escola, porque o código de conduta instaurado era o de não socializar com o bicha não-pagante (e vocês achando que só o narcotráfico, o crime organizado e a política possuem códigos de conduta, né? Tolinhos). Não demorou muito para surgirem comentários acerca do pagamento da mensalidade do ônibus. Será que eu pagava pelo ônibus, pelo menos? Ou será que até isso era de graça pro viadinho?

Agora vem refletir comigo: por que diabos um monte de pirralho trouxa de 13–16 anos estariam preocupados com o meu pagamento ou não das taxas da escola? Os caras não se sustentavam plenamente sozinhos (alguns até hoje não conseguem e vivem às custas da família), então: que diferença fazia pra essas pessoas?

A resposta é clara: como toda boa alma primitiva sem pensamento crítico e raciocínio próprio, eles reproduziam o que ouviam em casa como verdade absoluta (Bolsonaro nadaria de braçada nesse eleitorado dentro de 12 anos, mas isso fica pra depois). Sim, senhores; os idiotas não nascem idiotas, eles são forjados em estupidez enquanto a carne ainda está tenra, que é pra fixar bem para a vida toda.

Mais um pouquinho de tempo e criou-se o estereótipo de que eu era pobre: “Ah, não tá pagando nada, o pai deve estar mal das pernas e o dono da escola ficou com dó; tá estudando às nossas custas essa porra”.

E agora eu pergunto: o que faz a classe média diante de um pobre, de um miserável (mesmo que tudo isso seja uma alucinação coletiva, oriunda da completa incapacidade de um conjunto de pessoas em não conseguir compreender o conceito de bolsa de estudos)? E eu respondo: ela pisa.

Era a chacota do lugar. Viadão que só estudava e lia uns livros estranhos (devo confessar que ser apresentado a Platão e Sartre tão cedo é diferente, mesmo; faço esse “mea culpa”. Ler A República enquanto os demais iam escondidos assistir ao jogo de futebol na zona era visivelmente algo estranho para alguém da minha idade).

Eu não tenho dúvida de que o diabo seria uma melhor companhia.

Como todo filme de terror, esse ano teve um estopim para eu realmente entrar em depressão. Até aquele instante eu não me importava tanto assim, alguma coisa dentro de mim me falava que o problema não estava em mim; o que me chateava era ouvir as pessoas falando que meu pai tava quebrado e eu estudava de favor, porque na época parecia algo feio de se ouvir, feria o ego interiorano que hoje em dia posso dizer que se não matei, pelo menos deixo passando fome.

Mas o pior ainda estava por vir.

O professor de História organizou uma excursão para um local considerado patrimônio do estado, que casava com a tão sonhada interdisciplinaridade, etc, aquela coisa toda. Os alunos, mesmo, só viram aquilo como uma oportunidade de fugir do marasmo e ir pra cidade grande comer sanduíche ruim no MC Donald’s e tirar foto no shopping com câmera Tek Pix pra postar no flogão (mais um exemplo do quanto eu era uma pessoa esquisita: eu não tinha flogão, eu não gostava de tirar foto, e até hoje eu tenho asco de fast food).

Até aí, tudo bem, parecia um programa saudável. E lógico que eu quis ir, tinha visto o lugar na apostila de história, era super entusiasta de museus, etc, seria muito legal. E foi, eu fui, me diverti e voltei pra casa.

O que eu não sabia, e só descobri depois: Enquanto dava aula pros alunos de terceiro ano, dias antes da viagem, o professor de História, não conseguindo conter o barulho da turma de neandertais, disse: “Quem não fizer silêncio vai dividir o quarto com o Benedito, hein!? Quero só ver rapaziada, fiquem quietos aí”.

Ok, ta liberado usar o caps lock neste trecho.

MANO, QUE PORRA FOI ESSA?

(1) SE FOSSE PRA DAR O MEU CU COM 14 ANOS, NÃO SERIA PARA AQUELE BANDO DE MOLEQUE IGNORANTE E PAVOROSO QUE FALAVA COM UM SOTAQUE BIZARRO QUE PARECIA QUE TINHA UMA CHAVE DE FENDA TRAVADA NO MEIO DA LÍNGUA. ATÉ HOJE NÃO DA PRA SABER SE ESTÃO CONVERSANDO COM VOCÊ OU FAZENDO EXERCÍCIO DE FONOAUDIOLOGIA DEPOIS DE UM DERRAME. O QUE FAZIA ESSA GENTE OUSAR CONJECTURAR QUE EU PUDESSE ME INTERESSAR POR ALGUM DELES? EFEITO DUNNING-KRUGER, CLARO. UMA IGNORÂNCIA TÃO FORTE QUE É CAPAZ DE MASCARAR SUA REAL PERCEPÇÃO ACERCA DE SI MESMO E DO MUNDO AO SEU REDOR.

(2) QUEM ESSE FILHO DA PUTA PENSA QUE É? ELE ERA PROFESSOR NAQUELA BOSTA. QUEM ESSE NADA DE SER HUMANO ACHA QUE É PRA ZOMBAR DE UMA CRIANÇA QUE PASSAVA OS DIAS QUIETA, CUIDANDO DA PRÓPRIA VIDA, ESTUDANDO E SONHANDO COM O DIA EM QUE IA SUMIR DAQUELE INFERNO?

(3) ISSO VEIO DE UM PROFESSOR DE FUCKING HISTÓRIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA.

Foi uma bosta. Eu não queria mais ir pro colégio. Tive que ser transferido às pressas para outro lugar no meio do ano. Eu só não perdi o ano letivo porque aquilo foi uma queda e uma lição muito importante; naquele instante eu tive a mais plena certeza de que precisava me livrar daquela gente na minha vida, e isso só seria possível longe de lá; e para ficar longe de tudo aquilo, só estudando muito mais e passando num vestibular.

Sim.

A maneira como o diretor e os donos da escola trataram o problema foi nojenta. Fizeram o possível para encobertar o caso, mas não conseguiram. O corpo docente fez uma carta de repúdio pedindo a demissão do cara; que não foi demitido logo de cara,“foi saído” apenas um ano depois. Mas o estrago estava feito. A reputação nunca mais foi a mesma, principalmente dois anos depois, quando eu comecei a prestar vestibular, mas esse trecho eu realmente conto depois, num texto que será mais curto. O que eu aprendi naquele ano nunca mais será esquecido:

(1) Crianças podem ser más.

(2) Uma mente fechada é a pior prisão a que um ser humano possa estar sujeito.

(3) O inferno são os outros. Hell is other people. El infierno son los otros. L’inferno sono gli altri.

Não importa qual seja o idioma.

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