I-Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate

Dante sabia das coisas.

The Tenant — Roman Polanski.

Eu nasci e cresci no interior do Brasil, numa pequena comunidade de apenas 17000 habitantes. Sim, todo mundo é parente de todo mundo. E sim, todos sabem o que você fez no verão passado, e no passado; e no passado do passado. E sim, é tão entediante quanto parece. A quintessência da vida besta alertada por Drummond.

O tipo de lugar que nem o carro do Google fez questão de adentrar, porque sabia que lá não teria nada para ser visto ou agregado à história da humanidade, e portanto indigno de uma visita (sim, é sério. Ele passou pela rodovia e só fotografou o trecho externo da cidade, como se a inteligência artificial fosse capaz de adivinhar que o tempo de processamento dela merecia mais que aquilo).

Agora que este cenário sonho-de-todo-escritor-árcade, inspirador e instigante (tenho certeza de que você, leitor, está ansioso para conhecer) foi rapidamente introduzido, vamos começar a narrativa.

A única imagem registrada pelo carro do Google.

Não, eu não vou começar esta história com “primeiramente, eu sou gay, sempre fui gay, lindamente gay, gay até o último fio de cabelo que ainda não caiu e blá blá blá”; não. O que você precisa saber sobre mim é: eu sou estranho. Estranho, mas não o conceito millennial de estranho do tipo “sou especial e o mundo precisa me amar assim e meu cabelo é azul+roxo e vai ta tendo cabelo azul+roxo sim”. Não. Só estranho, mesmo. Esquisito.

Eu lembro do meu primeiro dia na pré-escola. Era uma sala com um mural da Branca de Neve e os Sete anões, e as mesinhas serviam para quatro crianças cada. A professora disse “Vai lá e escolhe um lugar para sentar”. Eu fui. Escolhi. Sentei na única mesa vazia.

“Você tem que sentar com outras crianças”, ela disse. Ah, ok; eu não sabia que tinha essa regra. Protocolo do ambiente, vamos obedecer. Me sentei numa mesa com outros meninos. Foi bizarro.

Eu me sentei e disse ‘Oi’, mas ninguém respondeu. Pequenos bichinhos do mato, obtusos, avistando um “forasteiro” (eu não tinha feito escola maternal — uma pré-pré-escola dos anos 90 que inventaram pra arrancar dinheiro de pais da classe média ascendente que queriam terceirizar a criação dos filhos — com eles no colégio particular local porque meus pais não podiam pagar e tiveram que me criar à moda antiga, presencialmente, e ensinando a ser um ser humano, sem uma tia remunerada pra limpar minha bunda suja de merda amarela; então eu realmente era um desconhecido), onde já se viu socializar?

Na época, minha mãe disse que eles iriam me conhecer e com o passar dos meses eu faria amigos. Passei os três primeiros meses dividindo a mesa com três meninos; no recreio eu lanchava sozinho; nas aulas de artes fazia desenhos sozinho. Eles só interagiam comigo quando a professora mandava. E sim, o resto da classe também. Aí que entra a parte do “estranho” que eu comentei acima: eu não me importava. Nem um pouco. Só fui desenvolver depressão anos depois, quando o lugar já teria virado um inferno, mas calma, vamos chegar lá; por enquanto você só precisa saber que eu sempre caguei para as relações humanas desde a mais tenra infância.

Foi depois de muitos anos que eu descobri que as crianças ouviam em casa que não era para interagir comigo. Provavelmente, alguns pais devem ter visto meu comportamento nas missas de domingo e me achado esquisitinho (eu também acharia, eu corria pela igreja gritando pra ver meu tênis com luzinhas no calcanhar piscando), e não queriam que os filhos ficassem iguais.

ESPERA UM POUCO, PRECISO FALAR UMA COISA: Eu amo a minha família. Nós temos nossos arranca-rabos — como todas as famílias comuns que vivem sob o domo da criação nesta terra plana, mas eu amo aquela galera. Imagina você passar anos escondendo a rejeição das famílias de um buraco no meio do nada para proteger o psicológico do seu filho de 6 anos. Para não deixar que ele descobrisse que os pais haviam orientado os filhos a não interagir com o coleguinha da rua de cima porque ele era meio viadinho.

Eu tinha 6 anos. Eu nem sabia o que era gay, o que era viado, o que era morder a fronha ou fazer a chuca. Mas a sociedade pensante, cosmopolita, bastião da efervescência de ideias, iluministas do interior que 21 anos mais tarde elegeriam um igual para nos representar no Planalto, já havia marcado a minha sina: Eu era viadinho. Não era para ninguém conversar comigo, nem pegar meu giz de cera emprestado.

Será que suspeitavam porque eu sempre queria ser o Shun?

Eu sou visivelmente agradecido à minha família por ter me blindado daquilo naquele momento. Aprender desde cedo a cagar e andar para a opinião dos outros, não seguir a manada, não se importar com a cara estranha que oferecem para o seu bom dia educado, fazer a lição de casa e seguir adiante foi um ensinamento que ficou gravado.

Com o passar dos meses e dos anos, fui fazendo alguns amiguinhos; mas já tinha me tornado relativamente antissocial. Então, me colocaram em um curso de teatro e num de inglês para me soltar e conversar com as pessoas. Era legal. Alguns imbecis seguiam me odiando gratuitamente, mas na época eu não sabia o motivo (obrigado, família), então cagava e seguia passando meu tempo preenchendo o livrinho de inglês e ensaiando para ser Árvore 2 (infelizmente minha carreira artística não decolou, como vocês podem imaginar; e eu estudei e me informei demais para tentar me aventurar no universo de conteúdo duvidoso dos YouTubers e dos blogueiros. Continuo anônimo — não que ache isso ruim).

Tudo seguiu no mais perfeito marasmo, conforme os desígnios de Deus, o Eru Ilúvatar da vida real. Estranho, poucos amigos, e passando o tempo estudando e aprendendo coisas novas. Tudo caminhava para o nada, como toda existência num lugar assim, até chegar a (pré?) adolescência. Mas isso é assunto para depois.

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